Jornalismo cultural: promessas e impasses (2)

Na coluna deste mês, levo adiante a série sobre jornalismo cultural, destacando em primeiro lugar o aspecto contraditório da circunstância contemporânea
Ilustração: Tereza Yamashita
01/07/2013

Possibilidades e óbices
Na coluna deste mês, levo adiante a série sobre jornalismo cultural, destacando em primeiro lugar o aspecto contraditório da circunstância contemporânea. Não importa que aspecto se privilegie, os dois lados da mesma moeda circulam ao mesmo tempo.

Um exemplo?

Dois.

A multiplicação dos festivais literários é um fenômeno decisivo. Ora, de um lado, ela permite um contato inédito do autor com seu público potencial — que deixa de ser o emblemático “Dez? Talvez cinco”, do defunto autor. Contudo, de outro lado, não é sintoma de elitismo assinalar o risco da espetacularização do escritor em detrimento da leitura de sua obra.

De igual modo, a profissionalização efetiva do ofício do escritor é uma conquista muito bem-vinda e que no cenário atual já se tornou irreversível. Porém, muitas vezes, o renovado circuito das letras — composto por oficinas, encontros e promoções de livros — demanda mais tempo do escritor do que o processo de criação de sua obra!

No fio da navalha, portanto, escrevo esta série de textos.

Retomo, pois, o método delineado no último artigo: proponho análises concretas de cadernos culturais, privilegiando sempre os colaboradores que lidam mais diretamente com a literatura.

E principio esclarecendo meu ponto de vista: a vitalidade do jornalismo cultural contemporâneo precisa ser reconhecida, pois o momento presente possui uma potência que, para aprofundar, precisamos identificar suas promessas e seus óbices.

Uma vez por mês
Começo pelo tradicional Suplemento Literário de Minas Gerais, criado por Murilo Rubião em 1966.

Em novembro de 2012 saiu a edição especial, organizada por Humberto Werneck, “A maioridade da crônica”. Esse número possui a densidade de um volume de referência, reunindo clássicos da crônica brasileira — de Machado de Assis a Carlos Drummond de Andrade — e textos de jovens autores — João Paulo Cuenca e Antonio Prata (o mais criativo cronista das novas gerações). Por fim, o número se encerra com estudo de Antonio Candido, Ao rés do chão. Em suma, um Suplemento para ser guardado como precioso acervo.

Penso ainda em outro número incontornável: “Nave errante”, um conjunto importante de “reflexões sobre o jornalismo cultural”. A instância metalingüística permite repensar o próprio Suplemento, pois as duas entrevistas que atam as pontas do volume — a primeira, com Sérgio Augusto, “Precisamos democratizar o elitismo”; a última, com Silviano Santiago, “A indústria cultural nunca será inteligente” — propõem análises certeiras acerca dos possíveis atalhos do jornalismo cultural no cotidiano dominado pelos meios audiovisuais e digitais.

Menciono, ainda, o número de maio de 2013, “A nova poesia brasileira vista por seus poetas”, ideado por Fabrício Marques. Trata-se de projeto editorial de grande alcance: poetas foram convidados para escolher um único poema de autores nascidos a partir de 1960. O organizador explica: “O desafio era duplo: escolher um poema memorável e escrever um comentário a respeito do que motivou a escolha. Responderam ao convite 54 poetas, que escolheram 52 poemas de 40 autores”. Esse número já nasceu clássico, referência obrigatória para quem se interesse pela poesia brasileira contemporânea.

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Outro suplemento cultural que merece destaque é Pernambuco, cuja estrutura é muito bem pensada. Em geral, cada número possui uma entrevista, um artigo de fundo, o perfil de um autor e uma seção de inéditos, além de resenhas e notícias relacionadas à literatura. A página 24, a última, é o espaço reservado a uma crônica.

O número 86, de abril de 2013, apresenta um ensaio de Talles Colatino, Lygia F. Telles está à espreita, leitor. Nele, Talles discute os procedimentos literários da escritora, cuja obra “questiona as fronteiras entre o real e o fantástico”. Cristovão Tezza publica o conto Beatriz e a morte; Marcelino Freire, uma provocadora crônica, 40 perguntas feitas a mim por uma blogueira cubana, na qual relata sua experiência como jurado do Premio Casa de las Américas. O perfil, assinado por Ricardo Nunes Viel, esboça o retrato de autor argentino ainda inédito no Brasil, Eduardo Berti.

O número 88, saído em junho, também se destaca.

Numa seção especial, Fábio Andrade encerra uma série de artigos dedicada à recuperação de críticos pernambucanos que militaram na imprensa. Sem nenhum bairrismo, o autor resgata nomes olvidados a fim de dirigir perguntas necessárias ao presente. Em Tomás Seixas: a fusão entre crítica e criação, por exemplo, descobre no crítico, morto em 1993, elementos anunciadores de preocupações atuais: “Os gêneros se diluem e dão lugar a um fluxo em que a criação e a reflexão sobre a literatura compõem um contínuo, potencializado pela linguagem (…)”.

Yasmin Taketani assina uma instigante entrevista com José Castello, “A literatura é tão potente quanto a ciência e a religião”. Em Subjetiva violência em meio às prateleiras, Regina Dalcastagné leva adiante sua pesquisa acerca das representações de classe no romance brasileiro contemporâneo, adotando um ponto de vista original: o espaço de sociabilidade dos supermercados como forma de estabelecer padrões de comportamento, logo, de definir hierarquias sociais. Luiz Vilela colabora com Você verá, conto inédito; Luís Henrique Pellanda fecha o volume com a crônica A indiferença da luz.

Poucos suplementos possuem um ritmo tão equilibrado entre as diferentes seções, confirmando sua consistência.

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Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná, é uma publicação mensal que rapidamente se impôs pela consistência de sua orientação editorial. Cada número possui um eixo monográfico, que oscila entre a memória e o calor da hora. Por exemplo, o número 22, de maio de 2013, foi dedicado à obra de um grande escritor, Jamil Snege, dez anos após sua morte; embora ele ainda seja pouco conhecido fora de Curitiba. Mas não se pense que alguma forma de provincianismo se mostre dominante. O número anterior discutiu “A vitória do romance”, como principal gênero literário do presente; no número 20, de março de 2013, como se anuncia na capa, “Quinze especialistas indicam os dez escritores mais promissores da literatura brasileira contemporânea”; o número 19 indagou “Para onde vai a crônica?”. Ora, a pluralidade é a marca dos eixos temáticos, definidores da espinha dorsal de Cândido.

Outras seções permanentes caracterizam o jornal.

“Um escritor na Biblioteca” é constituída por longa entrevista, muito bem conduzida acerca da obra de um autor convidado; “Perfil do leitor”, seção na qual personalidades revelam os livros que foram decisivos em sua formação; “Em busca de Curitiba”, composta por textos que reinventam a cidade; “Making of”, seção que realiza uma autêntica arqueologia de títulos clássicos da literatura contemporânea. E, claro, reserva-se espaço para a publicação de textos inéditos.

(Com esse modesto inventário chamo atenção para publicações fora do eixo Rio-São Paulo e, sobretudo, destaco a potência da cena contemporânea através do estudo concreto de suplementos e jornais.)

No calor do minuto
Hora de tratar de cadernos de cultura com periodicidade semanal.

Principio pelo Eu& Fim de Semana, do Valor Econômico, que sai todas as sextas-feiras. Trata-se de um sólido caderno de 36 páginas, cujo centro é a crítica cultural, embora a literatura tenha presença considerável.

Em primeiro lugar, assinalo a colaboração mensal de José Castello. Na seção “Instantâneos literários”, Castello entrevista autores os mais diversos, compondo retratos de grande sensibilidade. Por exemplo, no final de 2012, o poeta e ensaísta Marco Lucchesi foi apresentado em Um poeta em moto contínuo. Em março foi a vez do romancista Luiz Ruffato, fotografado no título da matéria, Um homem comum (15/03/2013). E o que dizer do extraordinário diálogo com Lygia Fagundes Telles, O grande banquete da ficção (15/03/2013)? A dicção surrealista do perfil da escritora confere ao texto uma densidade propriamente literária: “‘É preciso ser vidente’, Lygia insistiu e — como se estivéssemos em torno de uma mesa espírita — passou a invocar seres vindos desde longe, muito longe, procedentes de sua memória afetiva e das paisagens de suas ficções”.

O suplemento também concede espaço a ensaios de fôlego, nada comprometidos com as últimas notícias. No mesmo número 633, em Uma conversa infinita, Rodrigo Petronio propõe uma reflexão antropológica acerca da literatura, compreendida como “o aprofundamento de uma relação, de um face a face. Como diria Hölderlin, nós, humanos, somos um diálogo”. Miguel Sanches Neto ilumina o apetite ecumênico de certo gênero literário em Um monstro chamado romance (17/08/2012). Nas suas palavras: “Súmula do tempo moderno por incorporar as duas principais ansiedades do homem contemporâneo, entretenimento e conhecimento, o romance onívoro de hoje é um sinônimo de literatura”. Aliás, as duas últimas páginas do Eu& Fim de Semana são quase sempre ocupadas por ensaios sobre literatura, muitas vezes com escritores convidados. E, por fim, um bom espaço é reservado a resenhas.

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O caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, aposta na diversidade temática e talvez por isso não possua colunistas fixos, o que dificulta meu propósito de compreender a orientação dos suplementos através da recorrência deste ou daquele modelo de coluna.

Não importa: mãos à obra.

Eis minha impressão de leitor: nos primeiros números de Ilustríssima, a pluralidade levou a uma descaracterização desconcertante; havia um excesso de textos breves, em geral traduzidos, como se ainda pautássemos nossas preocupações pela antiquada “angústia da atualização”, ou seguíssemos dependentes dos “intelectuais aduaneiros” de plantão.

Na sua forma atual, pelo contrário, a estrutura do caderno parece ter encontrado o meio-termo entre o olhar voltado para o outro, a urgência do instante e a abertura para ensaios de maior fôlego.

A primeira seção, “Ilustríssimos da semana”, mantém o leitor informado sobre os últimos lançamentos.

Na penúltima página do caderno, duas seções permanentes ajudam a definir o ritmo de sua leitura.

Por um lado, “Diário de (…). O mapa da cultura” realiza uma bem-sucedida cartografia da vida cultural em latitudes as mais diversas. Por outro, “Arquivo aberto” cumpre perfeitamente a promessa do subtítulo, “Memórias que viram histórias”. Penso, por exemplo, no texto de Evando Nascimento, A biblioteca de Derrida (05/05/2013). A última página, “Imaginação”, é dedicada à criação — e, aqui, incluo a tradução, considerada esforço criativo.

Entre essas seções permanentes, há agora um espaço mais generoso para resenhas, artigos e ensaios — a maior parte produzida especialmente para o suplemento. E um bom número deles é dedicado à literatura. Numa lista nada exaustiva, lembro do texto sempre agudo de Leyla Perrone-Moisés, A literatura exigente (25/03/2012). Ou do ensaio instigante de Heloisa Starling, João Gilberto, Guimarães Rosa e a poética do Brasil (03/06/2012). Ainda da provocação de Fernando Antonio Pinheiro, Para ler Paulo Coelho (20/01/2013).

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Em meados do ano passado, o então Prosa & Verso sofreu uma reformulação editorial, acompanhando a reforma gráfica do próprio jornal, O Globo. Em sua atual versão, o Prosa dialoga mais diretamente com as circunstâncias políticas e culturais, e sempre que possível no calor da hora.

A matéria de capa da edição de 22 de junho de 2013 principia com a chamada: “A semana em que manifestações obtiveram redução das tarifas de transportes públicos (…)”. As páginas 2 e 3 trazem entrevistas com T. J. Clark e Raquel Rolnik, além de artigo de Luiz Eduardo Soares — aquelas e este relativos ao tema central do número. Aqui, o Prosa proporciona uma intervenção reflexiva no exato instante em que os acontecimentos ocorrem.

A edição de 1º. de junho de 2013, com o título “Outras vidas, a mesma seca”, relaciona-se com a homenagem da Flip à obra de Graciliano Ramos. Contudo, o puro fato jornalístico foi convertido em jornalismo cultural do melhor nível, com textos de André Miranda, fotos de Custodio Coimbra, cronologia da vida do autor e ensaio de José Castello. Vale dizer, um número de colecionador.

A literatura, porém, mantém sua importância na economia do suplemento, especialmente através dos colunistas.

Em sua coluna semanal, Castello reafirma a opção pela dimensão existencial da experiência literária, forjando um estilo que a cada novo texto se esclarece mais e mais. Não se trata de encontrar, no texto alheio, o próprio retrato, como no célebre caso do impressionismo de Anatole France. Pelo contrário, em seus exercícios de leitura, Castello parece sistematicamente desencontrar-se, e isso sempre a partir da escrita do outro. No artigo Javier e Manoel (04/05/2013), o método é mencionado: “Ficções nos golpeiam, em lances súbitos, quando menos esperamos”. Em Autoria e afasia (08/06/2013), os termos se equivalem na esfera do desacerto: “Autores não dominam seus livros. Ainda que o fizessem, jamais controlariam a leitura que deles fazemos. Leitores também não têm a plena posse de suas leituras”.

Quinzenalmente, Miguel Conde se afasta com rigor da agoridade do mundo da notícia, como o título de sua coluna sugere: “Procura-se — Livros, autores e idéias fora das prateleiras”. Em A explicação de tudo (23/03/2013) iniciou uma série de três artigos, partindo de um dilema que em princípio não forneceria pauta para jornal algum: “Uma questão como a da relação entre a parte e o todo pode parecer árida, de tão abstrata, mas diz respeito a nossas experiências mais corriqueiras de leitura”. Nessa série, Miguel passou a limpo as últimas décadas da crítica literária brasileira, reunindo densidade argumentativa e espaço jornalístico, numa clara definição de seu propósito.

Por fim, uma vez por mês, Carlito Azevedo assina a coluna “Risco”, que começou a circular em 10 de abril de 2010. Seu projeto, um dos mais importantes da imprensa cultural brasileira, não deixa de evocar a mítica página Poesia-Experiência, mantida por Mário Faustino no SDJB. Em Clareza, confusão e tanta vida (22/06/2013), com dicção hamletiana, e através da poesia que seleciona, Carlito pensa pelo avesso a prosa contemporânea: “E se de repente o mundo ficasse no mesmo nível de confusão que você? Isso seria o fim da confusão? O início da clareza?”.

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O breve percurso analítico do jornalismo cultural contemporâneo aqui se suspende — mas não se encerra.

Espero ter demonstrado ao leitor a potência do momento presente: a tarefa de realizar essa potência exige o trabalho prévio de compreendê-la.

Um ano-encruzilhada
Mas nem tudo é festa: recentemente o jornalismo cultural sofreu um duro golpe com a extinção do Sabático, suplemento de O Estado de S. Paulo, dirigido com brilho e rigor por Rinaldo Gama.

O tema do próximo artigo — precisamente.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho