Guerra cultural: eliminação do outro?
Não é incomum que se considere o livro Culture wars: The struggle to define America (1992), de James Davison Hunter, um marco na caracterização das guerras culturais do mundo contemporâneo. A luta pela definição da América abrange os temas dominantes das últimas décadas, estabelecendo a pauta de costumes que se tornou decisiva nas últimas eleições — e não apenas no Brasil. O minucioso subtítulo do ensaio é esclarecedor: Making sense of the battles over the family, arts, education, law, and politics. De fato, na ascensão internacional da direita e também da extrema-direita, as guerras culturais somente são inteligíveis no âmbito de autênticas batalhas ideológicas pelo estabelecimento de modelos normativos (reacionários até) de família, arte, educação, lei e política. No parlamento brasileiro, o crescimento exponencial da bancada evangélica é indissociável desse conflito de valores.
Um pouco antes, em 1987, Allan Bloom lançou um livro provocador, que obteve sucesso imediato: The closing of the american mind. O título lamentava o ensimesmamento do espírito americano, distanciado do humanismo clássico. A origem do dilema foi lhanamente identificada pelo subtítulo que faz questão de não ser nada sutil: How higher education has failed democracy and impoverished the souls of today’s students. A educação superior não somente traiu a democracia, como também empobreceu a alma dos estudantes. Eis o paradoxo que inquietava o autor: em lugar de colaborar decisivamente para a formação de futuros cidadãos, a universidade parecia determinada a trabalhar pela sua deformação.
(Esse ataque à universidade, vista como centro de uma doutrinação contrária aos valores tradicionais da civilização cristã e ocidental, foi inteiramente assimilado pela guerra cultural bolsonarista.)
O círculo se fecha: o ensino superior, alvo do ensaio de Bloom, teria sido a fonte da relativização das noções de família, arte, educação, lei e política; relativismo esse repudiado no livro de Davison Hunter.
No calor da hora, antes mesmo do início formal do governo Bolsonaro, Eduardo Wolf foi um dos primeiros analistas a assinalar a relação profunda, inescapável, do bolsonarismo com as culture wars norte-americanas. Nas suas palavras certeiras (estamos em novembro de 2018):
Jair Bolsonaro é o presidente das guerras culturais no Brasil. (…) Assim, a guerra cultural mistura o adversário real — os governos petistas e suas políticas (suficientemente desastrosas para merecer oposição) — com a fantasia retórica poderosa do “inimigo da nação”, que precisa ser “varrido do mapa”. (…) Esse tipo de retórica depende de uma característica fundamental das guerras culturais: a crença de que existe uma essência, uma identidade profunda e inalterável da nação ou da sociedade, e de que ela está sob ataque.[1]
Guerra cultural: traço da modernidade
Em todo caso, por que reduzir o conceito de guerra cultural ao contexto anglo-saxão no século 20?
Sem respeito à cronologia, voltemos ao século 17.
Posso ser ainda mais exato: retornemos ao dia 27 de janeiro de 1687.
(Foi uma segunda-feira, que prometia ser tediosamente pacífica.)
Mais conhecido pelo gênero literário que ajudou a sistematizar, o conto de fadas, nesse protocolar início de semana, Charles Perrault leu, numa sessão da Académie Française, um poema laudatório ao Rei Sol, intitulado sem maiores surpresas Le siècle de Louis le Grand. Os versos iniciais correspondiam à solenidade da ocasião:
La belle antiquité fut toujours vénérable;
Mais je ne crus jamais qu’elle fût adorable.
Je vois les anciens, sans plier les genoux;
Ils sont grands, il est vrai, mais hommes comme nous;
Et l’on peut comparer, sans craindre d’Être injuste,
Le siècle de Louis au beau siècle d’Auguste.
[A bela antiguidade sempre foi venerável;
Mas jamais acreditei que fosse adorável.
Vejo os antigos, sem dobrar os joelhos;
Eles são grandes, é verdade, mas, homens como nós;
E pode-se comparar, sem medo de ser injusto,
O século de Luís ao belo século de Augusto.][2]
O paralelismo não pretendia causar escândalo algum; na verdade, nem mesmo era particularmente ousado. Ora, se Luís XIV nada devia aos mais afamados imperadores da Antiguidade, como autêntico Rei Sol ele não deveria igualmente iluminar os outros domínios de seu século? Logo, se a Antiguidade é venerável, ou seja, deveria ser respeitada, nem por isso seria adorável, pois seu tempo já passou; agora caberia aos modernos estar à altura da grandeza de Luis XIV e desenvolver uma nova arte, assim como elaborar um novo pensamento. Silogismo impecável: o século do Rei Sol, por definição, não poderia ser inferior a nenhum outro, e não apenas ao beau siècle d’Auguste! E não somente no plano político, porém em todos os campos da atividade francesa, ou, como eles preferem pensar, humana. Logo, os artistas e os pensadores modernos no mínimo deveriam ombrear-se aos antigos, ou não seriam satélites dignos do brilho do Rei Sol. Em tese, portanto, nada haveria a objetar ao exercício encomiástico.
Os versos de Perrault, contudo, forneceram o combustível que faltava para o grande incêndio, que opôs antigos e modernos. Entre outros, Nicolas Boileau reagiu à involuntária heresia de Perrault numa defesa enfática da perfeição dos modelos clássicos, que, por isso mesmo, deveriam ser adotados como modelos necessários. A disputa se prolongou, envolvendo os nomes mais destacados da cultura francesa.
Exemplo acabado de guerra cultural numa acepção mais ampla, e que importa muito resgatar no agônico cenário brasileiro contemporâneo, a Querelle des anciens et des modernes opôs duas visões de mundo não apenas diversas, como também opostas. Nesse sentido, guerra cultural implica a disputa de valores, com base na superioridade dos princípios que este ou aquele grupo defendem.
Contudo, e esse ponto é decisivo, afirmar a preeminência dos valores esposados por um grupo em nenhuma circunstância significa advogar a eliminação dos que propõem princípios outros, aliás, como os versos de Perrault deixam claro. Em 1694, de fato, no mesmo palco da Académie Française, Perrault e Boileau se reconciliaram.
No século anterior, o princípio já havia sido exposto e, por que não?, com engenho e arte. A terceira estrofe do Canto I de Os Lusíadas é ainda mais forte na comparação entre os feitos da Antiguidade e as conquistas iniciadas com as Grandes Navegações. O raciocínio é cristalino: se as caravelas portuguesas singraram por mares de antes nunca navegados, caberia a Camões rematar a empresa, ampliando os horizontes da poesia épica:
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
O raciocínio de Perrault foi aqui perfeitamente antecipado: na trilha de um Vasco da Gama, a lírica portuguesa também deveria desbravar territórios novos, na forma da emulação da tradição de Homero e Virgílio, sobretudo deste último. Assim, tanto nos versos de Camões quanto nos de Perrault afirma-se a noção que autoriza a própria existência de guerras culturais, isto é, o tempo histórico moderno. A equação é de fácil entendimento: a modernidade inaugura um tempo cindido em três dimensões qualitativamente distintas: passado, presente e futuro. Em lugar de um tempo definido pela circularidade do eterno retorno ou pelo primado incontestado da tradição, agora, cada momento se diferencia do anterior e pretende superá-lo. Nesse registro conflituoso, o conceito de novidade é uma faca-só-lâmina, que avança na exata medida em que corta o que fica para trás e dele se desprende. Nesse horizonte, são definitivos os versos Cessem do sábio Grego e do Troiano, assinalando o inequívoco triunfo do moderno em relação ao antigo — em todas as áreas, bem entendido. Por isso mesmo, a ideia de modernidade é indissociável da sucessão de guerras culturais, já que o presente muito em breve será o passado do futuro que se avizinha e, desse modo, será contestado pelo novo presente que se forma. Na conceituação de Reinhart Koselleck, estamos às voltas com a relação complexa entre “espaço de experiência”, associado ao passado, e “horizonte de expectativas”, que se abre ao futuro.[3] O presente, cabo de guerra inesperado, resulta da tensão desses dois polos.
(Reitero o ponto que me interessa sublinhar: nesse horizonte não há espaço para a aniquilação do adversário; não se deseja apagar ou varrer o outro do mapa. Disputa-se, aqui, a hegemonia cultural, o que sempre implica a presença do coro dos contrários.)
Seria fácil multiplicar exemplos de conflitos de valores nos séculos 18 e 19, mas paro por aqui; afinal, já é hora de jogar na lata de lixo da história a guerra cultural bolsonarista, que não admite a diversidade, tornando a eliminação do diferente um maldisfarçado culto à morte.
[1] Wolf, Eduardo. “Luta pela alma do Brasil”, grifos meus. Revista Veja, 30 de novembro de 2018: https://veja.abril.com.br/politica/luta-pela-alma-do-brasil/. Consulta realizada em 15 de maio de 2020.
[2] Tradução de Bluma Waddington Vilar.
[3] Reinhart Koselleck. Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução Wilma Patrícia Maas Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2006. Ver, especialmente, o capítulo 14, “‘Espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativa’: duas categorias históricas”, p. 305-327.