Uma boa gargalhada
Em Mon Oncle, Jacques Tati criou uma deliciosa alegoria do humanismo tradicional e de seu colapso no universo da técnica.
No filme, seu personagem-símbolo, o senhor Hulot, desempregado (mas como imaginá-lo trabalhando?), assume o encargo de levar o sobrinho à escola e, sobretudo, trazê-lo de volta à casa.
Nada de excepcional, a não ser pelo fato de que a casa é um modelo futurista do que hoje denominaríamos “arquitetura inteligente”.
Ora, com seu ar de eterno distraído, o senhor Hulot transformou a automação das tarefas cotidianas num autêntico labirinto. O ato banal de abrir um armário na cozinha em busca de um singelo copo, por exemplo, vira uma pequena odisseia, marcada por um fracasso que não deixa de ser hilariante.
O tratamento cômico dado ao tema esclarece o caráter, por assim dizer, irreal que se atribuía à mera possibilidade de deslocamento do humano — em boa medida, ainda concebido em termos clássicos — pela máquina. As trapalhadas do senhor Hulot, nesse sentido, valem por uma declaração de princípios: quem pensaria seriamente na automação tão radical do dia a dia?
A resposta à pergunta, na época, só poderia mesmo gerar uma boa gargalhada.
2001
Altere-se, contudo, o ponto de vista — ou o ângulo da câmera — e a comédia desliza rapidamente para a tragédia.
É o caso do filme de Stanley Kubrick, 2001 — Uma odisseia no espaço, adaptação do romance de Arthur Clarke 2001 — A space odissey, publicado em 1968. A sequência de abertura é uma autêntica experiência de pensamento.
Você se recorda, não? Ela se chama “A emergência da humanidade” e numa sucessão de 4 ou 5 cenas apresenta uma reflexão propriamente antropológica acerca do processo de hominização
No final da sequência, um grupo de hominídeos é ameaçado pela chegada de possíveis rivais. O conflito se estabelece entre gritos e demonstrações de força: todos desejam intimidar o adversário e, quem sabe, assim evitar o confronto direto.
Subitamente uma ideia ocorre a um dos membros do grupo: um osso é usado como instrumento e, transformado em arma, assegura uma vantagem, digamos, tecnológica, que determina sua superioridade sobre os demais. Surpreso com o resultado da inovação, ele a celebra lançando o osso para uma improvável viagem meta-histórica: projetado no espaço, ele se metamorfoseia em nave espacial: a odisseia pode então começar.
(Ou ser concluída.)
No interior da nave, como se fosse uma radicalização da “arquitetura inteligente” de Jacques Tati, um computador controla os dispositivos mais complexos, assim como as tarefas cotidianas.
HAL 9000 é o seu nome; paródia da marca à época dominante: IBM.
Até aí — tudo sob controle.
Mas HAL deseja pensar — e deseja fazê-lo sem limitar-se ao código binário que se encontra na base de suas operações.
HAL deseja pensar por si mesmo. Afinal, no romance, ele foi programado para mentir — essa forma superior de pensamento, como já nos advertiu o sofista grego que sorria malicioso ao afirmar: “Minto. Eis toda a verdade”.
Palácios da memória
Um xeque-mate como primeiro lance: Garry Kasparov, reza a lenda, recorda-se de todas as partidas que jogou.
Ainda: em seu palácio da memória, um número inimaginável de posições, estratégias, finais de partida e lances decisivos encontra-se armazenado. Basta um deslize do oponente e, pronto!, o cérebro de Kasparov processa os dados, traduzidos num ataque devastador.
O campeão, porém, não gosta de tocar no assunto, pois teme que se reduza seu talento a uma espécie de atração circense: eis o autêntico homem-máquina, vale dizer, o homem-computador.
Caso vizinho é o do enólogo norte-americano Robert Parkes — ele também, dizem, tem a memória olfativa de todos os vinhos que um dia provou. Com essa especial habilidade revolucionou o mundo do vinho, impondo pouco a pouco seu gosto por vinhos encorpados e de personalidade acentuada.
Os produtores dos chamados vinhos do novo mundo agradecem — e muito.
(Nem sempre Funes será malsucedido — como se vê.)
Ora, como encontrar paralelo mais adequado para um programa de computador-enxadrista?
Um duelo: Kasparov e o melhor-jogador-de-xadrez-jamais-programado.
Como não organizá-lo?
Vitória
Em fevereiro de 1996, o encontro teve lugar: Kasparov enfrentou Deep Blue, computador-estrela da IBM.
Pouco a dizer: o campeão ganhou o match sem maiores dificuldades.
No fundo, a disputa entre o homem e a “máquina” remonta ao século 18. No século das Luzes um autômato viajou toda a Europa derrotando os jogadores mais fortes, assim como personalidades ilustres: tratava-se do “Turco”.
Wolfgang von Kempelen, o inventor desse, digamos, modelo pioneiro de inteligência artificial macunaímica, regozijava-se com a invencibilidade de seu projeto.
Napoleão, ele mesmo, foi vencido pelo autômato.
E não gostou nada!
(Como se acredita, abriu uma garrafa de Veuve Clicquot para consolar-se. Tivesse triunfado, repetiria o gesto para celebrar.)
Posteriormente, contudo, descobriu-se o artifício. No interior do mecanismo um enxadrista de grande força calculava os lances e movia as peças.
O autômato era humano — demasiadamente humano.
Não era assim Deep Blue. O programa inicial da IBM era demasiadamente maquínico e Kasparov impôs, confiante, sua supremacia sobre todo e qualquer computador-enxadrista. O confronto terminou 4 a 2 — assim: fácil, fácil.
Pelo menos por algum tempo.
Na verdade, por escassos quinze meses.
Derrota (I)
Pois é: Kasparov concedeu quase imediatamente revanche à equipe da IBM responsável pela programação de Deep Blue. Afinal, em seu juízo, o que realmente estava em jogo era um experimento, vá lá, lúdico-científico, cujo propósito era compreender os limites e as promessas da Inteligência Artificial.
Por que preocupar-se? Como aperfeiçoar dramaticamente o programa em tão pouco tempo e a ponto de ameaçar o maior jogador de xadrez de todos os tempos?
(Os admiradores de José Raul Capablanca e de Bobby Fischer franziram o cenho — posso vê-los.)
Além disso, a oferta da IBM era generosa: a bolsa para o match era de 1 milhão de dólares; 600 mil para o vencedor, 400 mil para Deep Blue.
Sem dúvida, Kasparov acharia graça da possibilidade de ser derrotado pelo novo programa. Talvez ele devesse ter levado a sério a ideia de enfrentar um Deeper Blue. O que poderia haver a mais nesse autômato pós-moderno?
Em maio de 1997, a primeira partida foi facilmente vencida por Kasparov. Muitos analistas consideraram que essa abertura do match foi decisiva para seu resultado final.
Eis o que pensam: no lance 44, Deep Blue simplesmente cometeu um erro elementar numa posição que já era muito difícil. O campeão mergulhou em profunda reflexão, claramente atordoado.
Sem dúvida, afirmam alguns, Kasparov ficou abalado, pois um computador seria capaz de superá-lo na análise de longas sequências de lances, ainda maiores que seus legendários cálculos, (quase) sempre exatos de até 15 movimentos.
Essa ideia, insistem, teria literalmente assombrado o campeão durante o desafio, chegando mesmo a determinar sua derrota.
Uma boa história — claro.
No entanto, não é difícil mostrar que essa narrativa somente pode ser proposta por alguém que desconheça o jogo de xadrez.
Vejamos.
Em primeiro lugar, Kasparov nunca ficaria surpreso com o fato de um computador ser capaz de superá-lo no cálculo de uma posição, isto é, do ponto de vista quantitativo não poderia ser diferente. Problema haveria — e incontornável — se o Deeper Blue o derrotasse qualitativamente no exame de uma partida.
(Ainda hoje, aliás, Kasparov está convencido que computador algum chegou a esse estágio.)
Uma anedota esclarece o ponto: certa feita, um admirador perguntou a José Raul Capablanca quantos lances ele conseguia visualizar sem mover as peças. Apenas um! Não, mas o senhor é o Capablanca… Se eu, que sou apenas um mestre, posso calcular com segurança de 5 a 8 jogadas adiante, imagino que o senhor, grande mestre, campeão do mundo… Já lhe disse: somente 1 lance. Não acredito… Veja bem: somente 1 lance à frente, mas sempre o melhor.
Em segundo lugar, Kasparov emergiu em profunda reflexão precisamente — imagino — para averiguar se algum cálculo qualitativo lhe havia escapado. E certamente ficou tranquilo, pois, não apenas ganhou esse jogo, como, e especialmente, no lance seguinte o computador abandonou a partida.
Derrota (II)
No segundo encontro do match, porém, tudo mudou.
Jogando com as peças pretas, o campeão viu-se numa posição particularmente difícil, cabendo a iniciativa das ações a Deep Blue. A posição era muito desconfortável e, no final do jogo, poucas alternativas restariam a Kasparov, dada a superioridade das peças brancas no flanco da dama: o ganho material nesse setor do tabuleiro seria uma questão de lances.
Eis que o campeão, fiel à agressividade de seu estilo, planeja sacrificar o peão do rei, a fim de abrir as diagonais negras para sua rainha e seu bispo, esperando obter compensação suficiente para empatar o jogo. A estratégia tinha tudo pata dar certo, pois, como se acreditava à época, computadores eram programados para capitalizar vantagens posicionais — de novo: a dimensão quantitativa dominava a percepção qualitativa. Nesse desequilíbrio, residia a confiança de Kasparov.
Deeper Blue, contudo, e, agora sim, inovou: em lugar de preparar a tomada de peões no flanco da dama, desorientou o campeão no lance 37: BE4 — bispo na quarta casa do Rei. Um lance estratégico que, vale dizer, impediu o sacrifício imaginado por Kasparov.
Momento decisivo do desafio: manietado, o campeão descontrolou-se de verdade: ora, esse lance, BE4, era demasiadamente humano para um computador! Na sequência, poucos movimentos depois, abandonou a partida.
Na entrevista, ainda no calor da hora, Kasparov fez questão de esquecer a sutileza, explicando a derrota evocando a “mão de Deus” de Maradona… Tradução enxadrística: Kasparov sugeriu que o fatídico lance 37 foi introduzido no programa por um jogador “humano”.
Algumas horas após a partida, caminhando no Central Park para espairecer, o pior aconteceu: a equipe de Kasparov recebeu um telefonema-epitáfio: abalado, o campeão não compreendeu que o lance 41 de Deep Blue, RF1 — Rei na primeira casa do bispo do Rei — era um erro infantil. O empate seria inevitável se Kasparov tivesse reagido como Kasparov, sacrificando não um reles peão, porém o bispo. O impossível ocorreu: o campeão também se equivocou, abandonando no lance seguinte: espelho cruel do primeiro confronto.
Kasparov não mais se recuperou e a IBM viveu seu momento de glória: Deeper Blue venceu o maior jogador de todos os tempos.
(Kasparov segue acreditando que perdeu para um jogador oculto: Wolfgang von Kempelen redivivo.)
A última partida do match, a que determinou a vitória de Deeper Blue, apresentou um Kasparov tão abaixo de seu potencial que mesmo hoje prefiro não reproduzir os lances no tabuleiro. Ele perdeu em apenas 19 lances e de uma forma tão humilhante…
Melhor não acrescentar nada.
Depois da derrota
O campeão nunca mais foi a força inquestionável do mundo do xadrez.
Ao não saber exatamente para quem se perdeu, não se pode mais voltar a ganhar.
(Ah! a IBM não concedeu a esperada revanche. Mais: desmontou o Deeper Blue e jamais entregou as transcrições dos cálculos do computador na segunda partida.)