“Empatriarse”: A contradição como método

A criação de um sistema filosófico supõe a reinvenção de palavras-chave, compondo uma rede conceitual
Ilustração: Bruno Schier
01/03/2013

Transcendental; empatriarse
A criação de um sistema filosófico supõe a reinvenção de palavras-chave, compondo uma rede conceitual. O mesmo princípio se aplica à crítica cultural. Hoje em dia, nada é mais urgente do que renovar o seu vocabulário e, ao mesmo tempo, ampliar o horizonte de leituras, a fim de aceitar o desafio de ser contemporâneo do próprio tempo: é o que buscarei com os artigos desta coluna. E começo valorizando o gesto intelectual do pensador espanhol José Gaos, radicado no México no final da década de 1930.

Ora, como entender a arquitetura da razão pura sem recuperar o uso atribuído por Immanuel Kant à expressão “filosofia transcendental”? Acepção contrária ao lugar-comum: “transcendental” implica que o ato de conhecer exige que o sujeito seja afetado pelos sentidos. Transcendental, portanto, se opõe a transcendente, metafísico; a razão pura concilia abstração dos conceitos e caráter imediato dos dados sensoriais. Na célebre fórmula de Crítica da razão pura: “Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas”.

No caso de José Gaos, a palavra-valise de seu pensamento é o verbo empatriarse, como ele definiu seu enraizamento na cultura mexicana. A tradição latino-americana, pelo contrário, recorreu antes à vivência do exílio, tanto ideológico como afetivo. Sérgio Buarque de Holanda tudo disse no seu desabafo em Raízes do Brasil: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”.

No entanto, tal como Otto Maria Carpeaux e Paulo Rónai no Brasil, José Gaos aprendeu a chamar de seu o país que adotou em seu desterro efetivo, após o triunfo do franquismo. Empatriarse bem pode ser uma tarefa atual para os latino-americanos, sempre enredados no exílio e suas canções. Repare-se na filigrana: que se trate de um verbo reflexivo parece adequado para um pensador da importância de Gaos.

Filósofo ou professor?
Escutemos as palavras do tradutor de Martin Heidegger[1]:

He dado a este curso de lecturas el título de Confesiones Profesionales y no el de Confesiones Filosóficas, porque estoy muy seguro de ser profesor de Filosofía, pero lo estoy muy poco de ser un filósofo. Para ser un filósofo parece que me falta pues, caramba, nada menos que precisamente una filosofía.[2]

Como compreender a afirmação? Modéstia programática? Ou o reconhecimento oblíquo do forte vínculo entre Gaos e seu mestre, José Ortega y Gasset?

Pergunta ainda mais importante porque o estudante Gaos teve a Xavier Zubiri como colega na Espanha. Zubiri foi o autor do primeiro livro escrito sobre Edmund Husserl fora de Alemanha e, além disso, estudou em Freiburg com o criador de Sein und Zeit.[3]

Segundo os critérios de Gaos, Zubiri foi propriamente um filósofo. De fato, ele desenvolveu um sistema coerente de idéias, com redes conceituais que compõem a estrutura da inteligencia sentiente — o pressuposto definidor do projeto intelectual de Zubiri.[4] Sua obra constitui um dos mais impressionantes desenhos, em língua espanhola, de um sistema filosófico autônomo, cuja ambição era reler a filosofia ocidental, produzindo um pensamento que superasse seus impasses, especialmente no tocante ao cruzamento de inteligência e dados sensoriais. Ecoando, a seu modo, a fórmula kantiana, Zubiri afirmou, em Inteligência e logos: “No sentir humano, sentir já é um modo de inteligir, e inteligir já é um modo de sentir a realidade”.

Já o incessante trabalho de Gaos foi reunido na forma de ensaios, traduções, introduções detalhadas a autores fundamentais, compilações de memoráveis cursos — nada que se assemelhasse ao caráter sistemático dos esforços zubirianos.

Por isso, Gaos provavelmente pensava em Zubiri ao não se considerar um “filósofo”.

Mas não somente em Zubiri.

Gaos talvez tenha vislumbrado no ensaio o gênero mais adequado à inquietude existencial de seu mestre, José Ortega y Gasset, assim como a forma mais precisa para lidar com as vicissitudes de um pensador exilado no México. Além do tratado sistemático, a filosofia poderia ser imaginada através de uma escrita alternativa, à qual corresponde um lugar determinado: “Yo soy yo y mi circunstância, y si no la salvo a ella no me salvo yo”, afirmou Ortega y Gasset.

Conhecemos a circunstância de José Gaos. Expatriado pela ditadura do Generalíssimo Francisco Franco, chegou ao México no final de 1938. Desde o primeiro momento, ele compreendeu que se tratava de uma residência permanente. Portanto, de imediato começou a “empatriarse”: “Pero ya a principios de 1939 (…) México me parecía ya mi destino, un destino que desde luego, aceptaba hasta con entusiasmo” (p. 65).

O trabalho intelectual de Gaos dificilmente teria sido tão produtivo se não tivesse entendido que, em lugar de criar exclusivamente uma filosofia própria, sua vocação também seria a de propiciar o esforço alheio. Foi decisiva sua importância na formação de nomes fundamentais para a moderna cultura mexicana. Gaos exerceu considerável influência no trabalho de Edmundo O’Gorman, Leopoldo Zea, Elsa Cecilia Frost e Luis Villoro, entre outros.

Recordem-se, nesse horizonte, algumas páginas de suas Confesiones profesionales, redigidas para o curso de inverno de 1953. Penso na conclusão de suas memórias, quando Gaos se refere a um episódio que define o cotidiano da literatura e do pensamento na América Latina.

As últimas páginas das Confesiones profesionales são antológicas e intelectualmente comovedoras. Gaos plasmou, numa forma literária impecável, os óbices que enfrentou em seu dia-a-dia. Desse modo, inventou o gesto filosófico que salvou sua circunstância — logo, a ele mesmo. Em alguma medida, trata-se do gesto que proponho resgatar nesta coluna.

A contradição como método
Um dia, algumas horas antes de sua aula na Faculdade de Filosofia e Letras da UNAM, Gaos decidiu dedicar toda a tarde à releitura da Crítica da razão pura. No entanto, o telefone tocou e seu plano perfeitamente prussiano foi interrompido por uma urgência bem latino-americana: a ligação era da Universidad Femenina, demandando sua presença para a resolução inadiável de problemas nada kantianos.

O professor de filosofia teve que deslocar-se imediatamente, e, por isso, não teria mais tempo para retomar seus estudos antes do encontro com os alunos: “De la Femenina me tendré que ir directo a la Facultad. Tendré que leerme el texto a toda velocidad, como Dios o el diablo me dé a entender, en los camiones” (p. 128-129).

As próximas páginas fotografam as dificuldades vividas diariamente por um pensador em nossas condições. Gaos buscava o impossível, pois, de pé, no ônibus lotado, mal se equilibrando, continuou a tradução do texto clássico de Filosofia:

“… dass wir amnehmen, die Gegenstände müssen sich nach unserem Erkenntnis richten… ” “… que admitamos los objetos dében-se por nuestro conocimiento regir…”

…………. “Eh, por favor, ¡esquina!”

……………………….Lo malo ahora, es que el “Circuito Hospitales”, a esta hora, y en

……………………….esta dirección, de Tacubaya, va siempre atestado de gente, y de qué… ¡pobre gente!

……………………….(p. 129)

Ressalto a mestria literária da passagem, que lança mão de um complexo palimpsesto, composto por três níveis.

No primeiro, Gaos deliberadamente traduziu palavra a palavra, deixando de elaborar a sentença estruturada a que teria chegado no conforto de sua mesa de trabalho. Assim, Gaos transmite o estado mental em que se encontrava no momento em que traduzia a prosa densa de Kant. Por isso, escreveu “los objetos dében-se”, ou seja, começou vertendo o substantivo plural die Gegenstände, então, o verbo müssen, e, somente no final, o pronome reflexivo sich. Não obstante, enquanto o ônibus avançava aos solavancos, ele precisou contentar-se com uma tradução precária, cuja precariedade traduz sua situação objetiva.

No segundo nível, intervém o acaso do entorno e um passageiro qualquer solicitou ao motorista que o deixasse em seu destino: — “Eh, por favor, ¡esquina!”. O grito desconcentrou o professor de filosofia, que, finalmente, precisou abandonar por preciosos instantes o enfrentamento com a razão pura para dar conta de desafio ainda mais ameaçador, pois o ônibus “a esta hora, y en esta dirección, de Tacubaya, va siempre atestado de gente (…)”.

Eis então o terceiro nível: agora, o pensador observa-se a si mesmo enquanto insiste em traduzir a Kritik der reinen Vernunft, resignado no ônibus que avança com dificuldade no trânsito sempre caótico da Cidade do México.

O périplo seguiu e o inesperado ocorreu: Gaos descobriu um assento livre; parece que por fim poderia ler com alguma tranqüilidade. Sem embargo, a seu lado, se encontrava uma criança que se dedicou a perturbá-lo de todas as maneiras possíveis. A tradução teve de ser feita apesar dos sobressaltos do caminho.

***

Antes de concluir este primeiro artigo, uma pequena digressão.

Em 1953, no mesmo ano em que Gaos ministrou seu curso, Ray Bradbury publicou Fahrenheit 451, título que alude à temperatura na qual os livros entram em combustão. Na ficção de Bradbury, os bombeiros não mais apagavam incêndios, porém queimavam livros. Contudo, um deles, Montag, descobre a arte de ler, o que transforma sua vida. Recorre então a Faber, um professor universitário aposentado, a fim de decifrar os textos que resgata da destruição. No metrô, dirigindo-se à casa de Faber, tenta refletir sobre uma passagem dos Salmos, mas é impedido pelos alto-falantes que incessantemente repetem a mesma propaganda:

Apertou o livro nas mãos.
Trombetas soaram.
Dentifrício Denham.
Cale-se, pensou Montag. Olhai os lírios do campo.
Dentifrício Dentifrício Denham.
Eles não trabalham.
Dentifrício…
Olhai os lírios do campo, cale-se, cale-se.
Denham!
Montag abriu bruscamente o livro, passando as páginas e olhando-as como se fosse cego, seguindo a forma de cada letra, sem piscar.
¡Denham! Soletrando: D-E-N…
Eles não trabalham, nem…

Montag não consegue mais se controlar, e, ao ordenar ao sistema de alto-falantes, “Calado, calado, calado!”, chama a atenção dos outros passageiros, que alarmados o denunciam. Descoberto, começa uma fuga desesperada até se converter num homem-livro.

***

Voltemos à criança que metodicamente se ocupava em distrair o professor de filosofia no lotação apinhado de passageiros:

………..el niño ha acabado por depositar
………..
sobre mi cogote un moco…
“…DER WIDERSPRUCH
WEGFALLE”
………..………..………
—    Eh, por favor, ¡esquina!
“… la contradicción desaparece del
camino…”
(p. 135)

Até o final de suas memórias, em meio a uma miríade de pequenos acasos, Gaos finalmente chegou à Universidad Femenina. E a frase decisiva é repetida oito vezes em duas páginas: “… der Widerspruch wegfalle…”.

De fato, a contradição desaparece do caminho!

Afinal, Gaos intuiu que tornar a precariedade matéria de reflexão é a via mais fecunda. Em lugar da melancolia chique que parece dominar boa parte da crítica cultural brasileira, o modelo de Gaos pressupõe uma escuta cuidadosa do contemporâneo, investigando a vitalidade de novas formas de pensamento, a fim de identificar a força de autores que merecem ser mais bem estudados.

(Aliás, o tema da próxima coluna.)

Notas
[1] Martin Heidegger. El ser y el tiempo. Tradução de José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 1951.

[2] José Gaos. Confesiones profesionales. Aforística. Obras Completas. XVII. México: UNAM, 1982, p. 45. Nas próximas referências, citarei apenas o número da página.

[3] Eis como Gaos se refere a Zubiri: “Y él era el prodigio — y el bien enterado: era ya graduado en Roma y había estado ya en Bélgica y Alemania”. Idem, p. 62.

[4] Tratei da filosofia de Xavier Zubiri em “Uma nova idéia do sentir e do pensar”. O Estado de S. Paulo, “Sabático”, 08/10/2011.

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho