De erros e desacertos: uma análise da produtora Brasil Paralelo (2)

Nos documentários criativos dos produtores gaúchos há uma série de elementos que revelam a inspiração propiciada pelos filmes de Steve Bannon
Estudante de medicina durante protesto na Cinelândia, em 1968. Foto: Evandro Teixeira
01/07/2021

Documentários muito engraçados
No plano da cultura audiovisual, a produtora Brasil Paralelo assumiu a tarefa de popularizar a versão conspiratória do Orvil (que analisei em coluna anterior e que basicamente reduz a história republicana, a partir de 1922, a um conjunto de tentativas de tomada do poder pelos perigosos e infatigáveis comunistas) numa série de documentários históricos muito engraçados (não tinham fatos, não tinham nada), eivados de grosseiros erros factuais, como demonstrei na análise do filme 1964: O Brasil entre armas e livros, dirigido por Filipe Valerim e Lucas Ferrugem. E, no entanto, seus criativos filmes já alcançaram mais de 30 milhões de espectadores.

Como entender esse êxito inegável? Afinal, como a plataforma da produtora afirma (em tom que não deixa de ser ameaçador): “Documentários e filmes gratuitos que já ensinaram milhões de brasileiros”.

Uma fonte e a repercussão
Um passo atrás, na tentativa de localizar inspiração para o projeto. Ora, os diretores da produtora Brasil Paralelo certamente assistiram aos documentários de Steve Bannon, com destaque para Generation zero.[1] O documentário propõe uma leitura muito particular da grande crise econômica de 2008, localizando suas raízes na contracultura da década de 1960 e na identificação de um delirante marxismo cultural que teria corrompido a “essência” da civilização ocidental, judaico-cristã, e, em consequência, teria debilitado a experiência histórica norte-americana. Num duplo twist carpado hermenêutico, descobrimos que a explosão da bolha financeira e imobiliária aí encontra sua causa primeira. Em 1964: O Brasil entre armas e livros, a interpretação sobre a década de 1960 é exatamente a mesma e, de igual modo, localiza-se a origem da hegemonia cultural da esquerda no clima “permissivo” forjado pelo espírito da contracultura.

Nos documentários criativos da Brasil Paralelo há uma série de elementos que revelam a inspiração propiciada pelos filmes de Steve Bannon: a estética de uma sucessão vertiginosa de imagens nem sempre relacionadas com a narração; montagem intimamente associada ao ritmo de videogames; idêntica interpretação conservadora, por vezes reacionária, da história; manipulação de fatos e dados, a fim de corroborar uma perspectiva revisionista; uso mimético da trilha sonora como mera ilustração de uma atmosfera em geral sombria, pois, claro está, o filme “desvenda” elaborados movimentos conspiratórios de alcance planetário.

Os documentários de Bannon evidentemente defendem um projeto político, como o próprio diretor assume. Brasil Paralelo, aqui também, emula o mestre.

A estrutura das teorias conspiratórias
René Armand Dreifuss inovou no estudo do golpe militar de 1964 com um livro-marco: A conquista do Estado. O cientista político realizou um levantamento minucioso do acordo político que urdiu uma conspiração envolvendo civis e militares para derrubar o governo João Goulart. O golpe foi cuidadosamente gestado por meio principalmente de duas frentes de atuação. De um lado, como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) responsabilizou-se pela promoção de ideias anticomunistas através da produção de peças de propaganda — filmes, documentários, folhetos, revistas e livros. De outro, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) assumiu a tarefa de apoiar uma nova geração de políticos para assegurar uma forte bancada suprapartidária. Fundado no final do governo de Juscelino Kubitschek, foi a partir da renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, que sua atuação cresceu em ritmo vertiginoso. O “complexo Ipes/Ibad”, termo empregado por Dreifuss, foi fundamental na montagem da articulação civil-militar do golpe de 1964, representando uma das mais decisivas ações da direita brasileira para obter hegemonia nos campos político, econômico e cultural.

(Mas a busca da hegemonia não é uma ação exclusiva da esquerda? Olhos bem abertos: pode vir o tempo negro e a força fará conosco o mal que a força sempre faz.)

O Ibad contou com recursos generosos de empresários brasileiros e abundantes fundos norte-americanos para eleger políticos de diversos partidos afinados com uma certa concepção de mundo e, sobretudo, aliados na adoção de um modelo determinado para a sociedade brasileira. Na campanha eleitoral de 1962, o Ibad fomentou a criação da Ação Democrática Popular (Adep), a fim de apoiar candidatos que se opusessem ao governo de João Goulart, difundindo o medo do “iminente perigo vermelho”. O terceiro ponto da “Carta de Princípios” da Adep parece diretamente saído de um manual anticomunista; no fundo, não deixa de ser uma antecipação da linguagem castrense do Orvil:

3 — Lutar contra a infiltração comunista em nossa pátria, que se esforça com palavras, para seduzir o povo, pregando reformas sociais a cuja execução os próprios comunistas constituem o maior entrave por saberem que jamais conseguiram o poder onde existia a justiça social e econômica.

Infiltração: palavra-chave no vocabulário tanto da polarização radical da década de 1960 quanto do eixo narrativo do Orvil. No léxico da direita e da extrema-direita no Brasil de hoje, infiltração traduz-se por hegemonia da esquerda — mantra inescapável que tudo justifica, até mesmo apoiar o bolsonarismo.

Sem deixar de reconhecer as diferenças históricas, a produtora Brasil Paralelo, fundada em 2016, representou para a chegada ao poder do bolsonarismo o papel que o Ipes desempenhou na preparação do golpe civil-militar de 1964. Seus imaginativos documentários aprimoram uma versão revisionista da história brasileira que domina a militância bolsonarista, contribuindo para o analfabetismo ideológico que define o cenário brasileiro.

Ao se preparar para a fantasia fora de lugar da Embaixada em Washington, o deputado federal Eduardo Boslonaro revelou sem pudor aparente o abismo de sua formação: ele estudava História através dos documentários da Brasil Paralelo. O próprio deputado propagandeou seu peculiar método de aprendizagem:

Tenho estudado para a sabatina e isso inclui estudar a história nacional. Assim, tenho revisto episódios do @brasilparalelo sobre a história do Brasil, como o episódio que trata da nossa independência passando por Leopoldina, Bonifácio e Princesa Isabel: https://youtu.be/YpjDmTdsJac. (Twitter, 25 de agosto de 2019, grifos meus)

Louve-se a diligência do aplicado aluno: tenho revisto episódios.

Silogismo de Napoleão de hospício
O que dizer do “curso” oferecido por Lucas Ferrugem, um dos criadores da Brasil Paralelo? O título assusta, O reino do terror vermelho, mas o espanto nada aristotélico vem mesmo do “conteúdo” oferecido pelo jovem palestrante. Escutemos o “especialista” em questões soviéticas:

Na primeira pesquisa sobre Rússia, tu vai encontrar o nome dessas três pessoas Lênin, Stálin e Trótski. Como que alguém como o Lênin, que vem duma classe média, consegue conquistar um território que, no War, é tão difícil de conquistar? Como é que o cara vira… Um aspecto de poder, mesmo… Como é que o cara vira, da classe média, o detentor dum poder unificado de toda a Rússia?[2]

No War? Isso mesmo: Ferrugem faz referência ao conhecido jogo de tabuleiro baseado em estratégias de guerra e geopolítica como base de comparação para seus aprofundados estudos do tema. E ao que tudo indica, ao dizer toda a Rússia, o jovem mestre pensava na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Aliás, a questão delicada dos inúmeros nacionalismos que não se reduziam à Rússia atravessou todas as décadas do poder soviético. Erudição pouca é bobagem! Espere um pouco e se encante com o domínio incomum da cronologia demonstrado pelo bravo professor:

O Hitler subiu [ao poder] em 1929… Em 1939, desculpa!… E caiu em 1945. O Stálin subiu em 1924 e caiu na década de 1950, foi caindo gradualmente na década de 1950. Ele ficou muito mais tempo no poder, ele matou muito mais gente.[3]

Hitler chegou ao poder no início da Segunda Guerra Mundial? Somente em 1939? Stálin foi caindo gradualmente na década de 1950? Ele não “caiu”, porém faleceu em 1953 e mantinha controle absoluto do aparato estatal! Deve ser preciso muito esforço para se chegar a esse nível de ignorância. Paro por aqui os comentários: não desejo expor ninguém ao ridículo, ou ceder à tentação fácil da caricatura. Pelo contrário, ofereço uma caracterização da mentalidade que autoriza erros tão absurdos que lindam com a má-fé.

Último exemplo, autêntico ponto de fuga que reúne vertiginosamente Lei de Segurança Nacional de 1969, Orvil e retórica do ódio, ao mesmo tempo em que esclarece a natureza das teorias conspiratórias da era digital.

Em outubro de 2019, a deputada federal Bia Kicis divulgou um vídeo caseiro no qual “militantes” das “Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia — Ejército del Pueblo” (FARC), falando espanhol com irresistível dicção carioca, ameaçavam iniciar a “luta armada” contra políticos do jaez de Jair Messias Bolsonaro, entre outras sandices. A gravação era tão hilariante que nem mesmo os bolosnaristas mais fanáticos levaram o episódio a sério. A deputada reconheceu a falsidade do material e retirou o vídeo de suas redes sociais. Eis que, no dia 26 de outubro de 2019, Olavo de Carvalho decidiu pontificar sobre o rumoroso caso:

Pouco iporta que, em si, o vídeo das Farc seja fake. O sentido do que ele expressa é verdade pura. As Farc SÃO o inimigo principal do Bolsonaro, e têm inumeráveis colaboradores no Brasil. (Twitter, 26 de outubro de 2019, grifos meus.)

O absurdo da proposição deveria invalidar a enunciação, mas o efeito é perverso: o dislate é de tal monta que termina por se assemelhar a uma revelação! As Farc são o inimigo principal de Bolsonaro? E não basta que tenham improváveis colaboradores no Brasil — usarão uniforme e crachá? Falarão todos espanhol aprendido no Meier ou em Bento Ribeiro? —, o mais ameaçador é que são inumeráveis. Em que terra plana habitam esses seres? Poderia citar vários outros exemplos da “erudição” dos filmes da Brasil Paralelo ou dos contrassensos lógicos do sistema de crenças Olavo de Carvalho. Porém, é mais importante caracterizar o “método” de suas intervenções, já que ele ilumina a estrutura das teorias conspiratórias que dominam o universo bolsonarista: trata-se do silogismo de Napoleão de hospício, e que parece ajustado ao excesso de informações que define o universo digital. Como se parte sempre da conclusão, que nunca muda e envolve um nível patológico de anticomunismo ou antiesquerdismo ou antiglobalismo, pouco importa o conteúdo das premissas anteriores. Se a conclusão é verdade pura, pouco importa se o vídeo seja fake. Para eliminar o inimigo, justificam-se todas as falácias e todas as mentiras. Desse modo, pouco importa a impossibilidade de processar a miríade de dados disponíveis nas redes sociais, pois, se a conclusão é o ponto de partida, a narrativa conspiratória se metamorfoseia em autêntico buraco negro que tudo absorve e nada transforma, pois a conclusão não se altera.

O resultado dessa ginástica mental?

A tragédia-Brasil.

[1] Vale muito a pena assistir ao documentário: https://bit.ly/2Xdxb7j.

[2] Ver o vídeo “O Reino do Terror Vermelho com Lucas Ferrugem”, do canal da produtora Brasil Paralelo. Link: https://bit.ly/2LlOlgu Ver a partir de 05:04, grifos meus.

[3] Idem, ver a partir de 06:00, grifos meus.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho