As paralelas não se encontram
Em coluna anterior, analisei as linhas gerais do documentário da produtora Brasil Paralelo, 1964 — O Brasil entre armas e livros, identificando em sua estrutura narrativa a própria lógica interna do governo Bolsonaro. Desta vez, discuto o emprego exótico de fontes documentais, traço dominante nos filmes da Brasil Paralelo.
Sem mais: direto aos fatos.
(No fundo, aos seus desvios.)
A “erudição” da rapaziada
Há instantes de riso frouxo.
Sílvio Grimaldo, com notável seriedade e uma incompreensível satisfação, inaugura o instante zorra total do documentário. Acredite se quiser, mas Grimaldo se refere à polêmica condecoração que Jânio Quadros ofereceu a Ernesto Che Guevara:
“Aconteceu o seguinte”: eles estavam numa sala e o Jânio Quadros pegou a medalha numa prateleira e colocou no peito do Che Guevara, e aquilo foi um presente, porque a “comanda” (sic), ela teria que ser dada… é… pelo Estado Maior. Por uma decisão das três armas. E o presidente simplesmente passou por cima daquilo e deu a comanda (sic) pro Che Guevara.[i]
Você leu o mesmo que eu? Vamos imaginar a cena: Jânio Quadros e Che Guevara caminham no Palácio. Subitamente, Jânio vê uma comenda numa prateleira. O que faz? Não resiste ao impulso, quase tropeça na ideia que acabou de lhe ocorrer, mas ainda assim alcança a comenda e, sem cerimônia alguma, deu a comanda pro Che Guevara. Na verdade, no estilo inconfundível de Grimaldo: colocou no peito do Che Guevara, e aquilo foi um presente. Pela descrição, pareceria antes uma agressão.
(Comanda? Mas estavam no Palácio ou no “Restaurante” Cruzeiro do Sul?)
Reconstruo o episódio por meio de duas fontes. O brilhante jornalista político Carlos Castello Branco foi assessor de imprensa do presidente Jânio Quadros e assim recordou o episódio:
A nota dizia que o presidente da República decidira condecorar com a Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul o ministro Ernesto Che Guevara, de Cuba, “no sábado seguinte”, quando passaria ele por Brasília, de volta da Conferência de Punta del Este.[ii](143)
No sábado seguinte? Mas não foi um arroubo de Jânio Quadros? Verdade factual: a condecoração ocorreu no dia 21 de agosto de 1961 e o decreto presidencial de concessão da honraria foi publicado no Diário Oficial da União no dia 18 de agosto. Ademais, a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul não é concedida pelo “Estado Maior”, porém pelo Conselho da Ordem, cujo Grão-Mestre é o próprio presidente da República. É verdade que, após a renúncia de Jânio, mais precisamente em 28 de janeiro de 1963, o Congresso Nacional tornou sem efeito o decreto de 18 de agosto: basta ler a documentação oficial, que pode ser obtida num átimo na plataforma da Câmara dos Deputados.[iii](144) No momento da condecoração, o ato foi legal e previamente conhecido.
A versão de Sílvio Grimaldo, por conseguinte, é uma invencionice absurda, que não pode ser encontrada em documento algum. Mas o que desejo é assinalar o ponto decisivo: Grimaldo não cometeu um erro factual de boa-fé, simplesmente ele inventou uma anedota e esse é o problema da maior parte dos documentários da produtora Brasil Paralelo: como sempre se parte da conclusão, com uma narrativa dominada pelo analfabetismo ideológico, pouco importa a correção de dados particulares. Outro exemplo da “metodologia” de seus documentários?
Ao tratar da cassação do registro do Partido Comunista Brasileiro, Rafael Nogueira se empolga, imposta a voz e capricha na interpretação. Na citação, ele se refere a Luís Carlos Prestes:
Ele foi entrevistado “por uma jornalista”, e a jornalista pergunta para ele: “Só supondo, senador, se houvesse uma guerra entre Brasil e União Soviética, de qual lado o senhor ficaria?” Ele disse: “Ficaria do lado da União Soviética, porque a União Soviética representa a classe dos trabalhadores, não é já uma questão nacional, é uma questão de união de classes”. “Beleza”: não importa a explicação. O que que (sic) o povo entende? Numa guerra Brasil / União Soviética, o “cara” ficaria contra o Brasil.[iv]
Esqueçamos a precariedade da expressão. Beleza, vamos aos fatos: dois deputados, Honorato Himalaia Virgulino e Edmundo Barreto Pinto, em denúncias separadas, pediram o cancelamento do registro do partido, acusado de ações antipatrióticas. Na plataforma do Tribunal Superior Eleitoral é possível consultar o processo na íntegra: são 211 páginas com a documentação completa do caso: trata-se do “Processo n° 411/412 — Distrito Federal”.[v] Na juntada de evidências havia declarações ou entrevistas de Prestes que, muito distorcidas, parecem inspirar a menção alegre de Rafael Nogueira.
Em todo o caso, a superficialidade da “citação” é propriamente patética.
Breve reconstrução do episódio que, em 1946, deu azo ao duplo pedido de cassação do PCB: neste momento, o Partido Comunista exercia suas atividades legalmente. Prestes foi eleito Senador pelo Distrito Federal com expressivos 157.397 votos, num total de 496 mil eleitores. Verdade factual: a querela principiou na Tribuna Popular, o principal jornal do PCB.[vi] No dia 16 de março de 1946, publicou-se uma matéria com o título “Prestes em sabatina com funcionários da Justiça”. Portanto, não havia “uma jornalista”, porém serventuários da Justiça interessados nas posições do líder de um partido que havia obtido uma expressiva votação. Leiamos o jornal:
A uma pergunta sobre qual a posição dos comunistas se o Brasil acompanhasse qualquer nação imperialista e declarasse guerra à União Soviética, o dirigente do P.C.B. respondeu:
— Faríamos como o povo da Resistência Francesa, o povo italiano, que se ergueram contra Pétain e Mussolini. Combateríamos uma guerra imperialista contra a URSS e empunharíamos armas para fazer a resistência em nossa pátria contra um governo desses, retrógrado, que quisesse a volta do fascismo. Mas acreditamos que nenhum governo tentará levar o povo brasileiro contra o povo soviético, que luta pelo progresso e bem-estar dos povos. Se algum governo cometesse este crime, nós, comunistas, lutaríamos pela transformação da guerra imperialista em guerra de libertação nacional.[vii]
A declaração permite interpretações enviesadas, reconheça-se. Certamente, o secretário-geral do PCB não foi feliz na resposta à delicada pergunta. No dia 23 de março de 1946, o deputado Honorato Himalaia Virgulino encaminhou ao TSE o pedido de cancelamento do registro do PCB. Três dias depois, Prestes ocupou a tribuna da Assembleia com a intenção de clarificar sua declaração. No entanto, o astuto deputado da UDN, Juracy Magalhães provocou Prestes a um debate no qual o Senador do PCB não se saiu nada bem. O circo estava armado e no final do mês de março o deputado Edmundo Barreto Pinto protocolou nova denúncia no TSE. Seja como for, o primeiro relator do caso, “após todas as investigações, no processo que recebeu o número 411, o procurador geral, Dr. Temístocles Cavalcanti, em parecer datado de 23 de abril de 1946, opinou pelo arquivamento das denúncias”,[viii] e ainda assim o processo seguiu adiante. A questão era muito mais complexa, pois, no ano de 1947, “em maio deste mesmo ano o Brasil fechava o Partido Comunista Brasileiro e em outubro rompia relações com a União Soviética”.[ix]
Não posso senão repetir o que disse: Rafael Nogueira não cometeu um erro factual de boa-fé, simplesmente ele inventou uma anedota. É como se o estudo da História se limitasse a uma sucessão de historinhas, mal alinhavadas por teorias conspiratórias.
“Imaginação”, aliás, que contagiou a edição do “documentário”. Para ilustrar a formação da guerrilha do Araguaia, que foi dizimada em 1974, os alegres rapazes da Brasil Paralelo não pensaram duas vezes e lançaram mão de uma fotografia de Sebastião Salgado, tirada no garimpo de Serra Pelada em 1986:
A foto do garimpo não tem qualquer relação com a guerrilha.
Dez minutos depois, outro erro: uma foto do general Augusto Pinochet, ditador, ao lado de Gustavo Leigh e José Toribio Merino, três dos líderes do golpe militar chileno de 1973, é usada para ilustrar o afastamento do general Costa e Silva e a tomada do poder pelos ministros militares brasileiros, no episódio que deu início aos anos mais duros do autoritarismo.[x]
Há mais.
Muito mais — você já sabe, retomo o texto na próxima coluna.
[i] Filipe Valerim e Lucas Ferrugem. 1964 – O Brasil entre armas e livros; ver a partir de 39:50, grifos meus. Ver o link: https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg.
[ii] Carlos Castello Branco. A renúncia de Jânio. Um depoimento. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1996, p. 60, grifos meus.
[iii] Toda a documentação pode aqui ser consultada: https://bit.ly/35ebF6P
[iv] Filipe Valerim e Lucas Ferrugem. 1964 – O Brasil entre armas e livros; ver a partir de 22:38, grifos meus.
[v] Processo n° 411/412 – Distrito Federal: http://bit.ly/3bcD7FW
[vi] Graças à extraordinária Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional é possível consultar as edições do jornal Tribuna Popular: http://bit.ly/2Lth03i
[vii] “Prestes em sabatina com funcionários da Justiça”. Tribuna Popular, 16 de março de 1946. A edição do jornal pode ser consultada aqui: https://bit.ly/3rXvpFt e aqui: https://bit.ly/398ajvB
[viii] Renato Arruda de Rezende. 1947 — O ano em que o Brasil foi mais realista que o rei. O fechamento do PCB e o rompimento das relações Brasil–União Soviética. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), 2006, p. 82. A Dissertação pode ser lida neste link: https://bit.ly/35aUCTi
[ix] Idem, p. 109.
[x] Leão Serva. “Filme ‘1964’ faz uso indevido de foto de Sebastião Salgado”. Folha de S. Paulo, 7 de maio de 2019.