No romance O sonho do celta, de Mario Vargas Llosa, um personagem secundário da trama, o médico norte-americano Herbert Spencer Dickey, explicitou sem meias-tintas a estrutura da violência em certas latitudes:
— A maldade, nós a carregamos na alma, meu amigo — dizia, meio de brincadeira, meio a sério. — Não nos livraremos dela tão facilmente. Nos países europeus e no meu ela está mais dissimulada, só se manifesta plenamente quando há uma guerra, uma revolução, um motim. Ela precisa de pretextos para tornar-se pública e coletiva. Na Amazônia, por outro lado, ela pode mostrar-se com o rosto descoberto e perpetrar as piores monstruosidades sem as justificações do patriotismo ou da religião. Só a agressividade, pura e dura. A maldade que nos envenena está em todas as partes em que há seres humanos, com as raízes bem arraigadas em nossos corações.[1]
O romance de Vargas Llosa trata de uma das piores atrocidades cometidas no território africano — como se fosse possível estabelecer hierarquias diante da “banalidade do mal”, na expressão de Hannah Arendt. O protagonista do romance, Roger Casement, foi testemunha dos acontecimentos no Congo Belga, cuja barbárie inspirou relatos de denúncia que tiveram grande impacto na época, como Coração das trevas, de Joseph Conrad.
Em 1876, Leopoldo II, rei da Bélgica, fundou a Associação Internacional Africana e, com o pretexto de fomentar uma missão cristã, apossou-se de vasto território, com o apoio de outras nações europeias. No primeiro momento, obteve apoio para sua “generosa” iniciativa. Porém, assim que as viagens à sua possessão tornaram-se frequentes, as denúncias começaram a se multiplicar.
Em 1909, Arthur Conan Doyle redigiu um severo informe, no qual denunciou o crime, isto é, o verdadeiro objetivo da empreitada:
Na Europa, o rei Leopoldo era um monarca constitucional; na África, um autocrata absoluto. […] Muitas vezes, o agente branco excedia em crueldade o bárbaro que executava suas ordens. E, também, muitas vezes, o homem branco punha de lado o homem negro para atuar pessoalmente como torturador e carrasco.
Com o rosto descoberto; só a agressividade pura e dura, uma vez que os acontecimentos ocorriam fora das fronteiras europeias — e o marco geográfico é decisivo.
O protagonista do romance de Vargas Llosa também denunciou o neocolonialismo. Em fins de 1903, Roger Casement escreveu um longo documento, condenando as práticas que se tornaram emblemáticas da cobiça europeia na África; práticas essas plasmadas numa imagem cujo impacto é similar à tristemente célebre fotografia da menina vitimada pelo napalm na Guerra do Vietnã: “[…] trouxeram-me um menino de não mais de sete anos, cuja mão direita havia sido cortada na altura do pulso. […] Isso aconteceu porque a contribuição de borracha não tinha sido suficiente”. No relatório, são frequentes as menções a casos ainda mais graves: “Um homem que vinha de um povoado a 20 milhas de distância pediu-me que o acompanhasse até sua casa onde, segundo ele, oito de seus concidadãos tinham sido assassinados pelos sentinelas devido à recolha da borracha”.
Casement conheceu Joseph Conrad no Congo Belga. Mais decisivo do que valorizar o enredo de Coração das trevas é observar a sutileza da estrutura formal da narrativa, que propicia um novo ângulo de leitura da frase do médico norte-americano de O sonho do celta: a maldade “nos países europeus e no meu está mais dissimulada”, como se uma fina capa de invisibilidade protegesse os cidadãos da violência perpetrada por seus governos.
Pior ainda: como se os mensageiros da “civilização” não conhecessem a barbárie em seus múltiplos disfarces.
Esse traço ilumina um aspecto-chave na técnica literária conradiana.
Forma de ocultação
O romance de Conrad esclarece as estratégias de ocultação da agressividade pura e dura no dia a dia dos impérios neocoloniais; impérios esses que operam essa mesma violência globalmente.
Coração das trevas principia com um narrador que se pretende neutro e deliberadamente se limita a apresentar o palco inicial da trama: um bergantim ancorado no rio Tâmisa. “A Nellie, uma iole de cruzeiro, alinhou-se com a âncora sem que suas velas batessem ao vento, e aquietou-se”.[2] Em meio ao cenário tranquilo, surge sem anúncio a voz de Charles Marlow, anunciando um paralelo insuspeitado, mas decisivo, entre Londres e os longínquos portos de onde vinham os marinheiros: “‘Aqui também’, disse Marlow de repente, ‘foi um dos lugares tenebrosos da terra’”. A reação dos marinheiros é reveladora: “Sua observação não pareceu nada surpreendente. Era bem o estilo de Marlow. E foi recebida em silêncio. Ninguém se deu o trabalho de emitir som nenhum […]”.
Ao fim e ao cabo, nem sempre há o desejo de investigar as origens dos impérios e das potências.
(Ou das riquezas familiares. Os herdeiros preferem contentar-se com o futuro; por que levar adiante pesquisas impertinentes acerca do passado?)
Afinal, o resultado invariavelmente reiteraria a tirada de Karl Marx:
Goethe, irritado com estas tolices, burla-se delas no diálogo seguinte:
“O mestre-escola: Dize-me, pois, de onde veio a fortuna de teu pai?
O menino: De meu avô.
O mestre: E deste?
O menino: De meu bisavô.
O mestre: E a deste último?
O menino: Ele a tomou”.[3]
Ancorado em segurança o bergantim, Marlow torna-se o narrador da história, recordando sua experiência de travessia do rio Congo, assim como a busca e por fim o encontro com o enigmático personagem Kurtz, cujas últimas palavras — “O horror! O horror!” — sumariam a presença europeia na África. Quando Marlow terminou seu relato, retorna o primeiro narrador, concluindo o romance:
Marlow se calou e foi sentar-se à parte, indistinto e silencioso, na postura de um Buda meditativo. Ninguém se mexeu por algum tempo. ‘Perdemos o começo da vazante’, disse o Diretor de repente. Levantei a cabeça. A vista do mar estava bloqueada por um banco de nuvens negras, e fluvial curso de água sereno que leva aos rincões mais distantes da Terra corria escuro sob um céu encoberto — parecia conduzir ao coração de uma treva imensa.
A estrutura formal de Coração das trevas sugere que “o horror” só pode ser experimentado por meio de uma série de filtros; por isso, a narração de Marlow é mediada pelo narrador que sintomaticamente emoldura o relato. Se ele começa de repente a narrar suas aventuras no Congo Belga, também de repente o diretor do bergantim rompe o incômodo provocado por suas palavras, ordenando a todos que retomem suas atividades regulares: nada de refletir sobre o senhor Kurtz!
Melhor voltar ao trabalho.
O bergantim, ancorado no Tâmisa, é uma pequena ilha de horror temporal e sobretudo contido.
Os marinheiros não chegaram a desembarcar na capital do império britânico. A agressividade pura e dura manteve-se presa ao microcosmo do porto, cingida à embarcação. Esse aspecto ilumina o traço decisivo da dimensão traumática do período nazista: além da pura aversão diante dos crimes cometidos pelos alemães, o duplo vínculo europeu não se manifestou fora das fronteiras do continente, mas em seu próprio centro. Eis aqui o desassossego da banalidade do mal: é como se os marinheiros tivessem desembarcado em Londres, disseminando na metrópole cosmopolita a presença da carta roubada da civilização ocidental.
Formas de desocultação
Em Los pasos perdidos, de Alejo Carpentier, os campos de concentração aparecem como metonímia do duplo vínculo que parecia conduzir […] uma treva imensa no ideal da Bildung:
O novo aqui, o inédito, o moderno, era aquele antro de horror, aquela chancelaria do horror […]. A dois passos daqui, uma humanidade sensível e culta — sem fazer caso da abjeta fumaça de certas chaminés, pelas quais haviam brotado, um pouco antes, preces uivadas em iídiche — continuava colecionando selos, estudando as glórias da raça, tocando pequenas músicas noturnas de Mozart, lendo A Sereia de Andersen para as crianças.[4]
Volto ao romance de Joseph Conrad.
Melhor ainda: refaço meus comentários iniciais.
Assinalei o efeito atenuador da estrutura narrativa, cujos marcos precisos amortecem os horrores relatados por Charles Marlow. Efeito que não deixa de recordar a técnica de invisibilização que perpetua a “visibilidade débil” no contexto latino-americano.
No entanto, há outra compreensão daquele efeito. A forma da escrita de Conrad também ameaça trazer à tona o que se desejava ocultar.
Por um lado, a voz de Marlow é uma acusação pura e dura das atrocidades cometidas em nome da civilização. Por outro, ela expõe sutilmente a incapacidade europeia de olhar-se no espelho de sua própria barbárie. A escrita não pretende simplesmente denunciar um conteúdo determinado, mas fazê-lo de um modo que torne visível a técnica de ocultação da responsabilidade europeia em casos traumáticos, tais como os crimes cometidos no Congo Belga.
A maestria literária de Conrad incidiu em todos os ângulos do problema. Marlow surge como vértice de um inesperado triângulo, composto pelo Congo Belga, pela Europa e pela mediação dos narradores de Coração das trevas.
Não se engane: essa triangulação é bem o avesso da “civilização” e da “alta cultura”.
(Num conto pouco mencionado, Mariana, de 1871, numa denúncia corrosiva da escravidão, Machado de Assis antecipou a forma literária conradiana. Tema, porém, para outra coluna.)
[1] Mario Vargas Llosa, El Sueño del Celta. Ciudad de México, Alfaguara, 2010, p. 298 (grifos meus).
[2] Joseph Conrad, Coração das Trevas. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo, Companhia das Letras, 2015, p. 9.
[3] Karl Marx, A Origem do Capital. A Acumulação Primitiva. Trad. Walter S. Maia. São Paulo, Global Editora, 1977, p. 13.
[4] Alejo Carpentier, Los Pasos Perdidos. Ed. Roberto González Echevarría. Madrid, Ediciones Cátedra, 1985, p. 159-60.n