Um resíduo-ruína
Terminei a última coluna aludindo ao efeito principal da “lírica do exílio” no plano do pensamento: a “epistemologia da distância”. A seu modo, e radicalmente, as formas poéticas são autênticos exercícios antropológicos.
O modernismo também aprendeu a tornar produtiva a distância. Ora, mesmo a “preguiçosa doçura”, da canção de Caldas Barbosa, que lemos na última coluna, reaparece na frase-valise do herói das gentes, Macunaíma: “Ai que preguiça”. Além disso, um ouvido criativo poderia escutar no elogio aos encantos da baiana, de Dorival Caymmi, as ressonâncias do saboroso “Oh! se tem! tem” da modinha setecentista.
A lírica do exílio, de fato, é o mais poderoso resíduo romântico presente na geração modernista. Contudo, antes de aprofundar essa tradição no modernismo e no pensamento social brasileiro, devo ainda tratar de dois poetas, cujos poemas ajudaram a plasmar definitivamente o tema do exílio.
Diametralmente oposto à simplicidade de Caldas Barbosa é o tom grandiloquente do poema de Gonçalves de Magalhães, cujo título vale por um sintoma, O dia 7 de setembro em Paris. Destaco as estrofes que lidam mais diretamente com a “lírica do exílio”, como o próprio poeta identificou sua dicção:
Longe do belo céu da Pátria minha,
Que a mente me acendia,
Em tempo mais feliz, em qu’eu cantava
Das palmeiras à sombra os pátrios feitos;
Sem mais ouvir o vago som dos bosques,
Nem o bramido fúnebre das ondas,
Que n’alma me excitavam
Altos, sublimes turbilhões de ideias;
Com que cântico novo
O Dia saudarei da Liberdade?
Ausente do saudoso, pátrio ninho,
Em regiões tão mortas,
Para mim sem encantos, e atrativos,
Gela-se o estro ao peregrino vate.
Tu também, que nos trópicos te ostentas
Fulgurante de luz, e rei dos astros,
Tu, oh sol, neste céu teu brilho perdes.
(…)
Mas em vão, que nos ares embruscados
O mimoso colibri não adeja,
Nem longe do seu ninho o canto exala
O sabiá canoro.
Ah! se ao menos a dor que me alma punge,
E a existência me azeda,
Um pouco se aplacasse, e doce riso,
Filho do coração, subisse aos lábios,
Quiçá na ausência da querida Pátria
Pudesse, inda que rouco,
Mais um hino ajuntar aos outros hinos,
Com que de meu amor lhe fiz ofrenda,
Quando no grêmio seu prazer gozava.
Lá, no teu seio, a vida respirando
Tranquilo e sossegado,
Ou no mar agitado, à morte exposto,
Ou aqui nesta plaga tão remota,
Fiel te sou, oh Pátria; não te olvido
Pelas grandezas que me ofrece a Europa.
Estes eternos monumentos d’arte,
Estas colunas, maravilhas mortas,
Estas estátuas colossais de bronze,
Estes jardins soberbos, estes templos
São belos; mas não são de minha Pátria.
Tuas virgens florestas, e teus templos
Mais me aprazem que tudo que aqui vejo.
Ah! quem me dera agora, em grato sonho
Iludido, cuidar que me revolvo
Ignorado entre os meus, entre o tumulto
Do povo que no rosto traz impressa
A glória deste Dia!
Quem me dera que os meus rústicos hinos
Por ele ouvidos fossem,
E por ele aplaudidos
No delírio do sacro amor da Pátria!
(…)
Dia da Liberdade!
Tu só dissipas hoje esta tristeza
Que a vida me angustia.
Tu só me acordas hoje do letargo
Em que esta alma se abisma,
De resistir cansada a tantas dores.
Ah! talvez que de ti poucos se lembrem
Neste estranho país, onde tu passas
Sem culto, sem fulgor, como em deserto
Caminha o viajor silencioso.
Mas rápidos os dias se devolvem;
E tu, oh sol, que pálido me aclaras
Nestas longínquas plagas,
Brilhante ainda raiarás na Pátria,
E ouvirás meus hinos
Em honra deste Dia, não magoados
Co’os fúnebres acentos da saudade.
Em meio à grandiloquência do registro, é fácil perder-se, deixando escapar duas ou três notas fundamentais na caracterização da lírica do exílio.
O verso que abre o poema — “Longe do belo céu da Pátria minha (…)” — é reduplicado no primeiro verso da segunda estrofe — “Ausente do saudoso, pátrio ninho, (…)”. Em ambos os casos, a experiência poética surge como um correlato objetivo da distância em relação ao Brasil. Daí, também, o próprio título do livro, uma síntese dos 55 poemas coligidos à sombra da equivalência: Suspiros poéticos e Saudades. Vale dizer, a melancolia do desterro é a fonte da poesia. Nos versos do poema, o efeito é explicitado na escolha nada fortuita de sua última palavra, autêntico fecho de ouro, síntese da visão do mundo do poeta: saudade.
Os últimos versos da segunda estrofe recorrem ao artifício comparativo para definir a positividade do distante “pátrio ninho”:
Tu, também, que nos trópicos te ostentas
Fulgurante de luz, e rei dos astros,
Tu, ó sol, neste céu teu brilho perdes.
Vale dizer, nos céus brasileiros, o astro-rei — diria Magalhães — brilha mais.
A quarta estrofe dá concretude à ideia do “pátrio ninho”, esboçando uma imagem apropriada por Gonçalves Dias numa modulação definitiva.
Refiro-me, claro, às palmeiras e ao sabiá. No quarto verso da primeira estrofe, Magalhães evocou — “Das palmeiras à sombra os pátrios feitos”. Agora, o tema se espraia em quatro linhas:
Mas em vão, que nos ares embruscados
O mimoso colibri não adeja,
Nem longe do seu ninho o canto exala
O sabiá canoro.
O cenário está montado para o tour de force: o eterno retono da oposição adverbial. Assim principia a quinta estrofe:
Lá, no teu seio, a vida respirando
Tranquilo e sossegado,
Ou no mar agitado, à morte exposto,
Ou aqui nesta plaga tão remota,
Fiel te sou, ó Pátria; não te olvido
Pelas grandezas que me ofrece a Europa.
Magalhães, contudo, adicionou dois novos elementos à oposição adverbial.
Em primeiro lugar, observe-se que o lugar do sujeito da enunciação permanece inalterado: ele se encontra aqui, distante da pátria, que corresponde ao lá.
Porém, surge a imagem gráfica da oscilação no verso Ou no mar agitado, à morte exposto. Isto é, Magalhães torna a viagem mesma motivo poético, o percurso físico entre o lá e o aqui. Atravessar o oceano é um rito de passagem, por assim dizer, líquido, mas nem por isso menos dramático, e, no fundo, até mais arriscado.
Além disso, as alusões às “grandezas que me ofrece a Europa” acrescenta uma cunha ausente na simplicidade do poema-canção de Caldas Barbosa. Agora, o exílio ameaça tornar-se condição existencial, independente de latitude. No exterior, a saudade do pátrio ninho é o ar que se respira. Mas, de volta ao Brasil, a saudade da civilização que se abandonou é uma forma inesperada de exílio interior. Portanto, o celebre “dilema do mazombo”, tão bem desenhado por Joaquim Nabuco, encontra-se formulado nesse verso de Magalhães. O último poema que discutirei, Adeus à Europa, é muito significativo nessa constelação de temas.
Nem cá, tampouco lá
Hora de mencionar, muito brevemente, o poema-símbolo de Gonçalves Dias. Penso, claro está, na Canção do exílio — no exílio e suas canções. Eis os versos que se transformaram em experiência cultural coletiva. E isso tanto de sua cidade letrada — pois nenhum outro poema foi tão apropriado e reescrito — quanto de seu imaginário coletivo — já que seus versos são citados com familiaridade mesmo pelos que não o leram.
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu’inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Recorde-se, à guisa de síntese, a cortante análise de Antonio Candido: o que era tema, tornou-se forma de experiência. Não pode haver melhor modo de caracterizar a distância da Canção do exílio para O dia 7 de setembro em Paris.
Gonçalves Dias transforma o adjetivo em verbo: o sabiá da Canção do exílio não é canoro, ele sabiamente canta… Ademais, ele levou a operação comparativa a sua conclusão lógica, poeticamente exposta. Nesse sentido, a primeira estrofe é primorosa. A substituição oportuna do adjetivo pelo verbo indica a orientação geral do poema: condensação poética de temas românticos, dando-lhes uma forma própria na simplicidade e musicalidade do poema. Tudo se encontra nessa primeira estrofe: as palmeiras, o sabiá, a oposição adverbial, e com uma economia de meios que assinala a superioridade da fatura artística.
A segunda estrofe realiza uma façanha epistemológica, pois o uso repetido do pronome possessivo, na primeira pessoa do plural, produz uma anáfora de grande alcance plástico. Em tese, essa anáfora deveria reforçar o sentido de identidade, até porque se parte de “nosso céu” até chegar à “nossa vida”, compondo um arco completo de possibilidades: do mais exterior ao mais interior, do mais alto ao mais íntimo.
No entanto, o emprego solidário do advérbio mais desestabiliza a identidade prometida pelo pronome possessivo, pois, agora, tudo depende de uma operação comparativa entre, digamos, A e B, vale dizer, Portugal e Brasil, ou seja, o aqui e o lá da primeira estrofe.
Compreenda-se o alcance do que se diz: o Brasil, utópica coisa-em-si, é sem nenhum caráter. Apenas pelo estabelecimento de contrastes com um outro qualquer, o país se torna algo, transitório — bem entendido. Isto é, somente em função da alteridade que lhe constitui: a contradição potencial da afirmação é o nervo da experiência cultural brasileira.
(A lírica do exílio.)
Por fim, astutamente, Gonçalves Dias preserva o tema do risco do exílio — “Deus não permita que eu morra” —, porém se esquiva de mencionar tudo que ofrece a Europa. Para que seus versos mantenham o vigor incomum que lhes constitui, a experiência poética apenas abarca a natureza tropical: “Sem qu’inda aviste as palmeiras,/ Onde canta o Sabiá”.
(Nota brevíssima: Oswald de Andrade entendeu perfeitamente a malícia implícita na escolha, e a virou pelo avesso, modificando ligeiramente a fonética, a fim de alterar radicalmente a semântica do primeiro verso: “Minha terra tem palmares” — à natureza, o antropófago opõe a história.)
Posso, então, encerrar essa breve análise da recorrência do tema do exílio, recordando apenas duas quadras do poema de Gonçalves de Magalhães, Adeus à Europa:
(…)
Ó lira do meu exílio,
Da Europa as plagas deixemos;
Eu te darei novas cordas,
Novos hinos cantaremos.
Adeus, ó terras da Europa!
Adeus, França, adeus, Paris!
Volto a ver terras da Pátria,
Vou morrer no meu país.
Destaca-se a ironia involuntária: Vou morrer no meu país. O verso inaugura uma ambiguidade que não se resolve. Duas possibilidades, contraditórias, se oferecem ao leitor. Alternativa do feliz encontro do eu lírico com a terra que lhe inspira: o poeta não mais deixará o pátrio ninho. Hipótese cínica do desencontro marcado que é bem o retrato em preto e branco do dilema brasileiro: no fundo, abandonar tudo que ofrece a Europa equivale a uma espécie de morte a crédito…
Como tornar essa contradição estímulo para o pensamento?
É o que discutirei na próxima coluna.
Notas
1 Minha análise deve muito ao brilhante estudo de José Guilherme Merquior, “O poema do lá” (A Razão do Poema, 3° edição, São Paulo: É Realizações, 2013, p. 57-68). Deixarei para outra ocasião o estudo da epígrafe do poema, aqui suprimida por questões de espaço.