A forma do exílio?
Nesta e nas próximas duas colunas, estarei propondo uma reflexão sobre a centralidade do exílio na cultura brasileira. Como entender o fenômeno? Por que a distância se impôs como condição necessária para o exame de determinados traços da experiência histórica nos tristes trópicos?
O breve estudo de dois poemas constitui um ponto de partida conveniente. Penso em Doçura de amor, de Domingos Caldas Barbosa, aparecido na coletânea Viola de Lereno (1798), e em Música brasileira, poema de Olavo Bilac, saído em Tarde (1917).
Começo por um franco desrespeito à cronologia.
Isto é, principio pela análise do soneto de Olavo Bilac.
Recorde-se o poema:
Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.
Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.
És samba e jongo, chiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
Na década seguinte, Paulo Prado, na frase de abertura de Retrato do Brasil, daria à noção a dignidade de um instantâneo do caráter nacional: Numa terra radiosa vive um povo triste. O contraste concentrado nessa sentença havia sido antecipado pela própria estrutura do soneto de Bilac.
Vejamos se o leitor concorda com minha perspectiva.
A primeira estrofe, em tese, afirma a positividade da música brasileira, capaz de modular o “fogo soberano do amor”. Logo, a cadência, “acesa”, corresponde à imagem do fogo, surgindo como autêntico combustível do “feitiço do pecado humano”. Talvez essa não seja a música ideal para ouvidos puritanos, porém não se pode negar o vigor a ela atribuído. Por isso, a familiaridade quase sensual com que o poeta se dirige à “música brasileira”: (Tu) tens…
De fato, ainda hoje, esse é um lugar-comum internacionalmente aceito acerca da música brasileira. Pensá-la como sinônimo de tristeza ou de angústia equivaleria a compará-la com o fado português ou com o tango argentino. Pelo contrário, desde a bossa nova, e mesmo antes, com o fenômeno representado pelo êxito de Carmen Miranda, a música brasileira é percebida como vibrante e alegre.
Contudo, mesmo na primeira estrofe, a locução restritiva, “às vezes”, introduz uma nota dissonante em meio à festividade implícita nos “requebros e encantos de impureza”. Vale dizer, nem sempre a música brasileira produz esse efeito.
Resta, então, a pergunta-chave: por quê?
A conjunção adversativa que emoldura a segunda estrofe, como se fosse um pórtico austero, uma autêntica correção de rumos em relação à promessa anteriormente sugerida, prepara o ritmo dos versos finais do soneto: Mas.
Toda a sequência do poema constrói um quadro antitético com a potência apenas esboçada nos quatro versos iniciais. Agora, em lugar do fogo, as cinzas; não mais a cadência acesa, porém a melodia melancólica, cuja nota dominante é “(…) a tristeza/
Dos desertos, das matas e do oceano”.
O sentido dessa tristeza peculiar reúne a incomum conjunção de três exílios, como os plásticos versos de Bilac acentuam; afinal, se trata de música cujos “Acordes são desejos e orfandades/ De selvagens, cativos e marujos”.
Portanto, o sentimento é muito pouco metafísico, pois, pelo contrário, é historicamente enraizado. Não estamos diante da melancolia romântica ou do spleen baudelairiano, porém, de uma circunstância determinada, cuja historicidade evoca a expansão ultramarina portuguesa e suas consequências mais dolorosas: os índios perderam o direito à terra; os africanos, o domínio sobre seus corpos. Nos três casos, a sensação dominante é a do exílio, ou, no mínimo, da ausência de pertencimento completo a um território definido. Com efeito, não estar de todo em lugar algum se torna a marca dessa forma de convívio. Não surpreende, pois, que sua expressão musical tenha como vocação profunda, quase exclusiva, a tristeza.
Vinicius de Moraes dramatizou o sentimento em composição com Tom Jobim: “Tristeza não tem fim/ Felicidade sim”. Agora, a tristeza é ainda mais triste, pois mesmo seu contraponto imaginário se estiola na brevidade de um instante. Na sequência da letra, afirma-se o contraste: “A felicidade é como a gota/ De orvalho numa pétala de flor/ Brilha tranquila/ Depois de leve oscila E cai como uma lágrima de amor”.
Bilac, então, sutilmente, inverte a promessa contida na primeira estrofe. Eis o que os versos finais do soneto realizam, ao definir a essência da música brasileira:
E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
O “fogo soberano do amor” empalideceu — por assim dizer. O adjetivo “lasciva”, aqui, nada tem a ver com emoção erótica, mas com a reunião de “três saudades”, cujo “beijo” não pode produzir êxtase, senão a consciência dolorosa da contradição que se encontra na origem da música brasileira: “Flor amorosa de três raças tristes”.
Ora, apenas cinco anos após a publicação do poema de Bilac, a Semana de Arte Moderna tudo fez para romper com esse modelo, estabelecendo a alegria como valor autônomo, verdadeiro motor da existência — a prova dos nove, no dizer bem-humorado oswaldiano.
(E como a ironia é o sal da vida literária, o financiador da festa foi Paulo Prado, o arauto da tristeza transcendental.)
A vitalidade da “alegria” como visão do mundo tipicamente brasileira foi sobretudo uma invenção modernista! E mesmo assim, foi preciso esperar uma boa década para que o contágio desse os primeiros frutos. Antes de 1922, pelo contrário, o retrato do Brasil foi registrado nas longas caminhadas do Imperador Pedro II com o Conde de Gobineau, nas quais o sábio e diplomata francês temia pelo (não) futuro do povo miscigenado.
Como sorrir despreocupado à sombra de uma tal espada de Dámocles?
Foi preciso passar pelo batismo da irreverência vanguardista, adotar o tom desinibido do manifesto e entender a própria existência como obra de arte em potencial para deslocar a tristeza do cenário, substituindo-a pela alegria que hoje, ingênua e anacronicamente, gostamos de traduzir como “essência” de uma hipotética brasilidade.
No entanto, certas ideias calam fundo.
Torquato Neto, em composição com Gilberto Gil, imaginou um atalho criativo, mesclando o príncipe dos poetas e o antropófago-mor: “A alegria é a prova dos nove/ E a tristeza é teu porto seguro”. O segundo verso ameaça transformar o sentimento melancólico em âncora da cultura: ao mesmo tempo, primeiro porto e destino final; o alfa e o ômega do propriamente brasileiro.
Como entender essa equação?
Como escapar desse círculo?
Cá, lá: em nenhum lugar
Tal leitura, ainda que ligeira, faz pensar no primeiro compositor brasileiro que desfrutou de razoável êxito no exterior. Com um tanto de ousadia, e outro tanto de anacronismo (as duas faces da crítica criativa), não seria difícil vê-lo como precursor dos inúmeros músicos brasileiros bem-sucedidos em suas carreiras internacionais.
Refiro-me a Domingos Caldas Barbosa e seu poema-canção Doçura de amor:
Cuidei que o gosto de Amor
Sempre o mesmo gosto fosse,
Mas um Amor Brasileiro
Eu não sei por que é mais doce.
Gentes, como isto
Cá é temperado,
Que sempre o favor
Me sabe a salgado:
Nós lá no Brasil
A nossa ternura
A açúcar nos sabe,
Tem muita doçura,
Oh! se tem! tem.
Tem um mel mui saboroso,
É bem bom, é bem gostoso.
As ternuras desta terra
Sabem sempre a pão e queijo
Não são como no Brasil
Que até é doce o desejo.
Gentes etc.
Ah nhanhá, venha escutar
Amor puro e verdadeiro,
Com preguiçosa doçura
Que é Amor de Brasileiro.
Gentes etc.
Os respeitos cá do Reino
Dão a Amor muita nobreza,
Porém tiram-lhe a doçura
Que lhe deu a Natureza.
Gentes etc.
Quando a gente tem nhanhá
Que lhe seja bem fiel,
É como no Reino dizem
Caiu a sopa no mel.
Gentes etc.
Se tu queres qu’eu te adore,
À brasileira hei de amar-te,
Eu sou teu, e tu és minha,
Não há mais tir-te nem guar-te.
Gentes etc.
A simplicidade dos versos levou Manuel Bandeira a anotar com justiça:
Caldas Barbosa é o primeiro brasileiro onde encontramos uma poesia de sabor inteiramente nosso. Algumas peças de Viola de Lereno pareciam poesia popular de hoje, se não se levar em conta a correção e elegância da dicção. Sua poesia, toda ela inspirada nas formas populares, modinhas e lunduns (…).
Aliás, na prosa de ficção, o tema é dominante. Ora, de Manuel Antonio de Almeida a Graça Aranha, uma sugestiva teia se tece, anunciando a centralidade da música popular na definição da cultura brasileira.
(Valerá a pena, num exercício futuro, enredar meu leitor nessa teia?)
Retornemos, por ora, à canção de Caldas Barbosa.
Nas suas linhas singelas, na verdade, uma letra de canção, Caldas Barbosa prefigura os temas dominantes da arte e do pensamento social brasileiros dos séculos 19 e 20. A afirmação soa desmedida, mas essa desmesura é bem o metro da lírica do exílio no imaginário brasileiro.
Com o registro despretensioso que é a marca-d’água da canção, a primeira quadra assinala a complexa operação comparativa plenamente desenvolvida por Gonçalves Dias — e que discutirei na próxima coluna. Penso nos versos: “Mas um Amor Brasileiro/ Eu não sei por que é mais doce”.
De um lado, a escolha do artigo indefinido — um Amor Brasileiro — de imediato relativiza o emprego das letras maiúsculas, que pareceriam exigir o artigo definido, sempre seguro de si mesmo, elemento estabilizador de definições: o Amor Brasileiro, e agora as letras maiúsculas podem orgulhar-se de sua maioridade. Já o traço indefinido torna-se ainda mais agudo com o recurso à comparação: Eu não sei por que é mais doce; isto é, esse “um Amor Brasileiro” não é isto ou aquilo per se,[1] porém apenas cobra vida em contraste com outro termo. Talvez por isso o poeta reconheça sem aparente pudor ou preocupação: Eu não sei por que…
As duas quadras seguintes inauguram o tópos decisivo na visão do mundo brasileira, inventando uma oposição adverbial que ainda hoje é empregada com a naturalidade de uma respiração.
Eis a invenção definitiva de Caldas Barbosa:
Cá é temperado,
(…)
Nós lá no Brasil
(…).
Algumas décadas depois da toada da viola de Lereno, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias estruturaram seus poemas mais conhecidos em torno desse mesmo contraste: cá versus lá.
E não é tudo: de igual modo, o sujeito da enunciação ocupa tanto o mesmo espaço físico, como idêntico território simbólico.
Em outras palavras, o poeta sempre se encontra distante da pátria, à qual, não obstante, se refere sempre apaixonadamente. No caso de Caldas Barbosa, ele estava em Lisboa; Gonçalves de Magalhães, em Paris; Gonçalves Dias, em Coimbra. Assim, o cá corresponde à distância física em relação ao Brasil; o lá à proximidade espiritual com o próprio país do outro lado do Atlântico.
Entende-se, assim, a felicidade do verso de Caldas Barbosa: “Nós lá no Brasil”, cuja extrema simplicidade convida a escutá-lo sem realmente prestar atenção em sua ambiguidade.
Evitemos a armadilha.
O uso da primeira pessoa do plural, Nós, pretende mitigar as consequências do afastamento, que se espera temporário, expresso no advérbio lá, que, mais do que simples função gramatical, aqui, vale como expressão do desejo de retorno ao lar. Desse modo, lida com olhos livres, a simples reunião das vozes Nós lá insinua um pêndulo entre o próprio e o alheio, o próximo e o distante; oscilação cujas consequências levam longe na vida cultural brasileira.
Daí a necessidade do reforço semântico, figurado num ingênuo pleonasmo, que se materializa numa redundância melódica: no Brasil; ora, o lá não deixava margem a dúvidas: era mesmo no Brasil.
Eis, num verso singelo, toda a lírica do exílio.
(Isto é, uma epistemologia da distância — como discutirei na próxima coluna.)
Notas
A série de artigos que principio este mês teve sua origem em texto discutido no SESC-SP e posteriormente muito ampliado em curso ensinado na Princeton University, no primeiro semestre de 2014, “Anthropophagy, Literature and Culture: Lyrics of Exile in Brazil and Beyond”. O interesse e a inteligência dos alunos contribuíram muito para a reflexão que agora apresento.
[1] Argumento brilhantemente desenvolvido por José Guilherme Merquior, ao qual retornarei na próxima coluna.