O que deseja um museu?

Visita ao Museo Nacional de Arte, Cidade do México
Ilustração: Carolina Vigna
15/01/2016

Duas fases, três períodos…
Na coluna deste mês, façamos uma visita ao Museo Nacional de Arte, localizado na Cidade do México. A página do Museu esclarece seu propósito:

Fundado en 1982, el Museo Nacional de Arte abrió sus puertas con un acervo de 1124 obras procedentes de la red museística del Instituto Nacional de Bellas Artes y de sus distintas dependencias. Desde entonces, la vocación del Museo ha sido conservar, custodiar, exhibir, interpretar, estudiar y difundir la creación artística producida en México — por locales y extranjeros — entre 1550 y 1954; reuniendo en una misma colección a destacados artistas de distintas vertientes, escuelas, géneros y modalidades que configuran un panorama integral de la cultura visual en los contextos novo-hispano y de los siglos 19 y primera mitad del 20.

Las salas permanentes del Museo Nacional de Arte ofrecen al público un recorrido por cinco siglos de historia del arte mexicano.[1]

Para um frequentador de museus brasileiros, a primeira surpresa decorre da cronologia. De fato, já na segunda metade do século 16, o universo pictórico novo-hispano caracterizava-se por uma riqueza de formas e uma variedade de temáticas incomuns no território colonial. O percurso proposto pelo Museo organiza o acervo da arte “mexicana” (adiante, esclareço a ressalva) em 26 salas, distribuídas em duas grandes fases:

I. Asimilación de Occidente (1550-1821)

Salas 1-3 – Transplante y asimilación
Salas 4-6 – Contrastes lumínicos y de color
Salas 7-12 – Reelaboraciones y novedades pictóricas
Salas 13-14 – Nacimiento de un proyecto ilustrado

II. Construcción de una nación (1810-1910)

Sala 15 – Alegorías políticas
Salas 16-18 – Biblia e hispanidad
Sala 19 – Literatura y Academia
Salas 20-21 – La memoria histórica nacional
Sala 22 – Retrato del México independiente / El paisaje del siglo 19
Salas 23-24 – Retrato del México moderno
Salas 25-26 – Modernidad y apocalipsis

Duas grandes fases, como se percebe, porém, dispostas em três núcleos históricos principais: período colonial; México independente; cultura moderna, chegando à década de 1950.

Pois bem.

O visitante brasileiro se concentra, e, surpreso, é tomado por uma dupla constatação.

De um lado, nos séculos 16 e 17, o trabalho novo-hispano com a forma pictórica não possui equivalente na pintura brasileira até bem avançado o século 19. E, ainda assim, o exercício dos pintores coloniais hispano-americanos alcançou uma radicalidade que somente o modernismo procurou esboçar no Brasil.

As circunstâncias históricas ajudam a entender o descompasso.

Na América Hispânica, os conventos ensinavam o ofício como meio de evangelização por meio da produção de imagens religiosas. A escola de Frei Pedro de Gante tornou-se célebre pelo domínio técnico de seus alunos, a par de sua capacidade de adaptação de temas herdados da tradição hispânica, em particular, e da europeia, em geral. Na coluna de novembro, recuperei a referência reveladora de Bernal Díaz del Castillo, que consta da Historia verdadera de la conquista de Nueva España, publicada postumamente em 1632. Vale a pena recordá-la:

(…) A mi juicio, aquel tan famoso pintor en la Antigüedad, Apeles, y los de nuestro tiempo, Berruguete y Micael Angel, no harán con sus pinceles las obras que tres indios hacen aquí en la escuela de Fray Pedro de Gante.[2]

Não é tudo: em 1557, os pintores locais criaram uma corporação para assegurar e, ao mesmo tempo, normatizar o exercício da arte. A chegada de artistas flamengos e espanhóis, por fim, completou as bases da futura escola novo-hispana, propiciando a apropriação das últimas inovações europeias.

O resultado foi o surgimento de uma geração notável de pintores nas últimas décadas do século 16 e nas primeiras do século seguinte; entre eles, Luis Juárez e Baltasar de Echave Ibía, filho do pintor basco Baltasar de Echave Orio. Já no final do século 17 e no começo do seguinte, começaram a destacar-se pintores da estatura de Juan Correa, Cristóbal de Villapando e Miguel Cabrera. Aliás, este último foi um dos expoentes do único gênero pictórico sistematizado na América Hispânica, a pintura de castas.

Não é pouco, portanto.

Palavra-chave: formação
De outro lado, contudo, os três núcleos principais inesperadamente recordam o José de Alencar de Benção paterna, o prefácio-manifesto de Sonhos d’ouro, publicado em 1872. O autor de Iracema também esboçou três momentos decisivos na formação da literatura brasileira, e, sem dúvida, a obra alencariana contribuiu para a definição de seu perfil.

Vejamos.

Em primeiro lugar, uma fase “primitiva, que se pode chamar aborígine, são as lendas e mitos da terra selvagem e conquistada”, seguida por um período “histórico: representa o consórcio do povo invasor com a terra americana”, e culminando na “terceira fase, a infância de nossa literatura, começada com a independência política, ainda não terminou”.

Você entende aonde vou: o modelo narrativo privilegiado na organização do Museo Nacional de Arte projeta retrospectivamente a noção de arte “mexicana” para o conjunto da experiência artística anterior ao contexto oitocentista de criação do Estado nacional.

Ora, o que se ganha e o que se perde com esse modelo?

(Isso mesmo: sempre se perde algo em qualquer abordagem; às vezes, também se ganha. Só a ingenuidade crítica e o narcisismo teórico acreditam ter descoberto a chave do poema.)

Posso ser ainda mais claro na formulação do problema.

Eis: o eixo narrativo que organiza a exposição do Museo Nacional de Arte evoca o Antonio Candido de Formação da literatura brasileira (Momentos decisivos). Isto é, tudo se passa como se as salas do museu compusessem um inesperado livro-instalação, definindo a inserção ou a exclusão de telas pela possível atribuição do caráter nacional à produção artística.

Critério por certo rígido, mas não necessariamente teleológico — e essa diferença nem sempre é reconhecida.

Mas, no fundo, é muito simples: a história literária de Antonio Candido não parte de uma origem determinada enquanto essência e que, por isso, orientaria a “evolução” da literatura nacional. Pelo contrário, Candido propôs uma cartografia dos momentos decisivos na criação de um sistema, cujo eixo é antes o polo da recepção.

Venho, pois, à pergunta que anunciei: o que se ganha com tal modelo narrativo? A resposta é clara: a capacidade de disciplinar um grande número de obras numa corrente que se completa na imagem da nação.

No entanto, o que se perde com esse modelo?

Em primeiro lugar, a arte novo-hispana não pode ser plenamente apreciada se a considerarmos mero anúncio do movimento oitocentista da Independência.

Inventa perpretata…
Daí negligenciar-se a particularidade de obras cuja força permitiria redimensionar tanto a prática artística quanto o próprio pensamento no âmbito de circunstâncias não hegemônicas.

Penso, concretamente, em algumas telas que, no Museo Nacional de Arte, ajudam a aprofundar o tema da poética da emulação, tal como tenho desenvolvido nos últimos anos.

Para este artigo, limito-me a três quadros.

Começo com San Agustín, tela sem data definida, de Antonio Rodríguez, ativo no século 17.[3] O quadro lida com uma imagem em aparência nada diversa da iconografia dominante: em sua mesa de trabalho, Agostinho escreve. A pena, suspensa no ar, sugere que o Bispo de Hipona se encontra no momento mesmo de registrar suas ideias. Aliás, toda a iconografia da tela evidencia uma cena de escrita: ao lado dos instrumentos adequados ao ofício, destacam-se o chapéu cardinalício e o memento mori, representado pela caveira repousada sobre a mesa. No caso de uma cena de escrita, o símbolo da finitude parece evocar o célebre provérbio, verba volant, scripta manent. Um livro aberto implica a consulta permanente das Escrituras, complementada pelas figuras do Cristo e da Virgem que, como uma nova anunciação, inspiram a reflexão do Santo.

Tudo de acordo com os lugares-comuns da representação à época dominante, compondo uma retórica visual que os pintores novo-hispanos assimilaram tanto dos mestres europeus, radicados na colônia, quanto das gravuras que circulavam em todo o reino espanhol.

Contudo, eis que Antonio Rodríguez inscreve na folha em branco a frase que Agostinho deixou incompleta: In principio erat Verbum. Isto é, a abertura do Evangelho de João, aqui citado pela Vulgata, de São Jerônimo.

Você me acompanha: o Agostinho do pintor novo-hispano transforma-se num inesperado Pierre Menard, que, em lugar de recriar o Quijote¸ reescreve o Evangelho de João!

O mesmo Antonio Rodríguez, numa tela também sem data, apresentou uma versão do autor da Suma teológica. Mais uma vez, seu “Santo Tomás de Aquino” reitera o tópos da época. Tomás de Aquino escreve; e a pena suspensa no ar transmite o instante de fixação do pensamento. Ele para um momento, levantando os olhos para o crucifixo em busca de orientação. Um livro na mesa, embora fechado, esclarece a consulta frequente por dois detalhes significativos: a capa do livro encontra-se gasta, algumas folhas dobradas e, sobretudo, pedaços de papel se destacam no miolo do volume, assinalando passagens a serem relidas.

Portanto, pelo menos em tese, nada de novo.

Contudo, eis que Antonio Rodríguez inscreve na folha em branco a frase que Tomás de Aquino deixou incompleta (cito exatamente como o pintor a grafou; há diferença em relação ao texto-fonte): Nissi esses verus Deus non afferres remedium nissi esses verus homo non preteeres exemplum.[4]

Passo a passo.

Eis a tradução da frase: “Se não fosse verdadeiro Deus, não daria remédio; e se não fosse verdadeiro homem, não daria exemplo”.

Nesta passagem, Tomás de Aquino procurava demonstrar a necessidade de o Verbo fazer-se carne, isto é, de Jesus Cristo ter sido Deus e homem.

Esqueço a Teologia, que aliás ignoro, para concentrar-me na intrigante estratégia do pintor novo-hispano. A frase, sem dúvida, pertence à Suma teológica, porém, e esse é o ponto a ser assinalado, não se trata de uma reflexão do autor! Trata-se de uma citação do Papa Leão I, dito o Magno, e cuja principal contribuição doutrinária foi a definição da natureza simultaneamente humana e divina do Cristo, determinada no Concílio da Calcedônia, realizado em 451.

Reitero: não discuto o que não conheço — Teologia. Somente aduzo essas informações, a fim de sublinhar o que importa para a reflexão acerca da poética da emulação: o Tomás de Aquino de Antonio Rodríguez menos “escreve” do que “cita” uma autoridade.

Como avaliar a centralidade da cópia e da citação nessas duas telas?

Não disponho, ainda, de uma resposta conclusiva, mas posso adiantar uma ideia.

Eis:

Melhor: estudemos outra tela.

Destaco um quadro de 1729, La flagelación, de Nicolás Enríquez — como se sabe, umas das cenas mais representadas da Paixão de Cristo.

De imediato, a tela chama atenção pela violência graficamente exposta.[5] O corpo de Cristo, já caído no chão, encontra-se literalmente dilacerado, pedaços de carne se acumulam a seu redor e fiapos de pele se mantêm dramaticamente soltos. O impacto é ainda maior porque a coluna vertebral e as vértebras de Cristo podem ser vistas a olho nu, tão funda foi a laceração de sua carne. Uma espessa camada vermelha adensa o espaço, colorido com sangue. Não é tudo: a cena sugere que os torturadores eram todos aqueles que assistiam ao tormento, pois mesmo os espectadores fisicamente distantes de Cristo brandem açoites ameaçadoramente.

Antonio Rodríguez inspirou-se na obra da mística espanhol María de Jesús de Ágreda, Mística Ciudad de Dios, cuja descrição detalhada do flagelo foi traduzida visualmente pelo pintor. Desse modo, tornou-se responsável por uma das imagens mais fortes da Paixão — e isso em qualquer latitude.

Não é tudo: no canto direito inferior da tela, o pintor novo-hispano inscreveu a notação: Inventa, perpetrata que â Nicolao Enrriquez, anno 1729.

Nicolás Enríquez dá as mãos a Antonio Rodríguez, rematando o que seu par do século anterior intuiu.

Claro: a cópia e a citação compõem recursos próprios do registro da invenção.

Inventio: substantivo do verbo invenire.

Isto é, inventar significa recombinar elementos prévios, arranjar de modo próprio relações já existentes. Por isso, La flagelación é uma invenção, pois parte deliberada e explicitamente do texto de María de Jesús de Ágreda.

Talvez
Concluo, portanto, com um detalhe tão perturbador como fascinante: os pintores novo-hispanos, já nos séculos 16 e 17, articulam uma reflexão de grande agudeza sobre as condições de produção artística no espaço colonial. Nesse universo, copiar, citar, reproduzir vêm à tona com força.

Força articulada em torno da ideia de invenção; palavra-valise que diferencia a fatura novo-hispana e cujas consequências ainda hoje não fomos capazes de radicalizar.

Tema a ser aprofundado — e muito.

No próximo mês, faremos uma visita similar; agora, ao Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

notas

[1] Eis o endereço: http://munal.mx/coleccion. Trata-se de uma página de grande interesse, pois permite ao usuário baixar vídeos, audioguias e apostilas de exposições passadas.

[2] In: Luis Javier Cuesta. “América y la maniera miguelangelesca”. Oswaldo Barrera Franco & Luis Javier Cuesta (orgs.). Miguel Ángel Buonarroti. Un artista entre dos mundos. México D.F.: Instituto Nacional de Bellas Artes y Literatura, 2015, p. 38.

[3] https://www.google.com/culturalinstitute/asset-viewer/saint-augustine/kwGS5ApcSQpaiw?hl=es&projectId=art-project.

[4] Para facilitar a consulta, ver: http://www.logicmuseum.com/authors/aquinas/summa/Summa-III-1-6.htm. Aqui, a frase reza: “Nisi enim esset verus Deus, non afferret remedium, nisi esset homo verus, non praeberet exemplum”. Uma reprodução do quadro (infelizmente, não muito boa): https://www.flickr.com/photos/charlesmtz/3445454842.

[5] https://www.google.com/culturalinstitute/asset-viewer/the-flagellation/eAE9nGnQ-wz5FQ?projectId=art-project&hl=es.

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho