Miragens & metamorfoses (1)

Ao contrário de seus autores, personagens são criaturas ilimitadas, muito acima da maçante média humana
Ilustração: Tereza Yamashita
01/09/2020

Personagens são muito mais interessantes, muito mais amados e celebrados do que romancistas. Se eu tivesse que escolher entre passar uma tarde conversando com Dom Quixote ou Cervantes, eu certamente escolheria Dom Quixote.

Nesse território imaginário de conversas fantasiosas, por que entrevistar Mario de Andrade, Monteiro Lobato, Clarice Lispector ou Guimarães Rosa, se eu posso entrevistar Macunaíma, Emília, G. H. ou Diadorim?

Escritor é sempre tão… Aborrecido. Tão cotidiano. Principalmente os geniais, que nunca fizeram nada de interessante, além de se isolar e escrever. Seus personagens, ao contrário, são criaturas ilimitadas, muito acima da maçante média humana.

A cachoeira das eras, de Carlos Emílio Corrêa Lima, teve uma única edição, em 1979, quando seu autor contava apenas vinte e três anos. Hoje esquecido, é um dos romances mais fascinantes que eu descobri em minhas escavações recentes. E agora, graças a esse portal que se abriu entre a realidade empírica e a supra-realidade literária, eu tenho o privilégio de conversar com alguns de seus assombrosos protagonistas.

• Clara Sarabanda, quando e onde você se metamorfoseou na magnífica esfinge tropical que devora a noite e o dia e todos os mistérios profanos, antes de se devorar inteirinha?
Besteira… Boato infundado… A indômita Clara Sarabanda — mil vezes eu — jamais se devorou, jamais extinguiu a si mesma, deixando de ser ela e se transformando em ausência completa, esquecimento e vazio. Pelo contrário, nunca acreditei em outra coisa: meu livro tem sido a máquina perplexa da cosmologia-nuvem, de sua instalação permanente, e desde então Clara Sarabanda permanece como uma repercussão insistente sobre todos os acontecimentos do mundo e — naturalmente — do livro.

• A verdadeira revolução é mesmo a santidade? Ou seria o contrário? A verdadeira santidade seria mesmo o mundo-revolução? Confesse, Clara Sarabanda: qual é a verdadeira natureza de sua santidade?
É o abandono das cidades. São os personagens que encarnam e reencarnam o tempo todo. As mudanças de identidade e de ponto de vista a cada parágrafo. Personagens que se transformam em animais do deserto e da floresta e depois voltam normalmente à forma humana. A perspectiva das árvores, o modo de enxergar o mundo dos pássaros, dos peixes, a dança das carnaúbas nas madrugadas do sertão. Deuses, semideuses e demônios, e seres humanos ficcionais ou históricos, todos convivendo em caravanas através das páginas do romance. Tudo isso sou eu, Clara Sarabanda. Porque eu sou a música invencível das origens, sou a fala da vida e dou alma às escrituras. Arquétipo das metamorfoses e da orquestração. Eu, Clara Sarabanda, com minha voz de cachoeira narrativa, sou a folhagem e a floresta. Por mim as frutas pensam, sou a pajé que está por trás do luminoso Juripari, sou a ocorrência de todas as eras, que convivem simultaneamente nesta longa e sinuosa história que é A cachoeira das eras.

• Albimiron, você desbravou, mais do que ninguém, os inúmeros labirintos do tempo e do espaço amazônicos. Você conheceu, mais do que ninguém, os muitos povos fantasmas desta nação continental chamada Pindorama. Quando cortaram tua cabeça, num sonho-alucinação, que revelações sagradas dominaram tua consciência?
Sou muito difícil, como entidade, de ser captado. Há dias que o autor de A cachoeira das eras tenta me recapturar — desde que começou a escrever este texto com este lápis —, mas até agora não conseguiu nada. Porque eu chego na ponta mais fina de um lápis tornado mágico, ponta imantada diretamente por mim, tendo sido antes mergulhado na noite, enquanto o autor dormia seu sono agitado em minha perseguição. Na casa, todos estão dormindo e jamais notarão que um lápis se eleva de uma mesa de cabeceira e passa a levitar no ar do quarto, em alta velocidade, desenfreadamente, nas duas direções ao mesmo tempo, então ele começa a girar em torno de seu eixo de grafite, depois ultrapassa uma janela aberta que dá para a noite e sobe com rapidez luminosa até o ponto mais alto já alcançado por qualquer objeto ou ser essencialmente terrestre, onde então minha mão direita o captura e eu sopro sobre ele velhas e sábias palavras mágicas, na língua estelar que somente a nós pertence, aos antigos e agora imortais magos babilônicos antediluvianos.

• Você sempre teve muito poder sobre esse lápis…
Unto-o com minha presença total, e ele, em seguida, desemboca de volta, ainda mais rapidamente do que durante sua subida, quando veio na direção de meu altíssimo acolhimento, desemboca de volta ao quarto do autor ainda adormecido, já de manhã, quando logo ao despertar de um inútil sonho cego ele o vê, a esse lápis, vindo misteriosamente das altas esferas do espaço e das mentes — é tudo a mesma coisa — e o toma com cuidado e escreve inicialmente este texto que vos mando do infinito, que é o verdadeiro significado do meu ser, que é a Palavra que me define da melhor maneira, que é sempre a verdadeira, pois é a minha identidade de escriba celeste.

• E as iluminadas cabeças cortadas, contadoras de histórias?
Quando o autor de A cachoeira das eras escreveu seu livro, todos os utensílios de escrita — sua máquina-de-escrever Olympia, suas canetas e seu lápis — haviam sido previamente imantados da mesma forma que este lápis com o qual ele novamente vos escreve, mesmo os utensílios que ainda dormiam nas lojas. As diversas personagens através das quais eu participo da obra ajudaram, por dentro, a criação do romance no plano narrativo e estrutural. No mais alto patamar do universo, eu guardo na consciência todas as cosmogonias aparentemente esquecidas, somente na aparência perdidas, dos antigos povos indígenas de Pindorama. Foram essas histórias que as iluminadas cabeças cortadas contaram em seu festival de peregrinação pelos sertões das madrugadas mais remotas.

• Jari, demônio da lua, teus diabólicos sortilégios cobrem a epopeia inteira, teus tentáculos pavorosos atravessam todas as épocas deste mundo, mundo, vasto mundo. Como você se sentiu ao ser finalmente exorcizado pelo famigerado professor Ludovico Chovenágua, em Fernando de Noronha?
Augusto Lopes toma a palavra: Responderei pelo demônio. É que Jari ocultou-se definitivamente em seu cofre de trevas, e como deixou de falar língua humana será impossível para ele responder a qualquer pergunta. O que o sábio Ludwig Chovenágua realizou na ilha que até então não tinha formigas foi crucial pra esse seu total emudecimento. Mas Jari ainda causou muitos problemas no Brasil, na Amazônia, na mente e no coração de homens e mulheres do mundo por mais uns trinta, quarenta anos, até que toda a sua força se foi, exatamente quando foi surpreendido pelo fluxo da Coluna de Clara Sarabanda, quando o Projeto Jari foi inteiramente derrotado. Mas não se iluda, há marés de demônios por todo o espaçotempo e eles se enviam da distância, substituindo em decrescente potencial aqueles que os antecederam. Até que um dia cessarão suas vibrações pra sempre. Mas isso é um longo, ardente e mediúnico trabalho que a Coluna de Clara Sarabanda, essa confraria aberta de incansáveis iniciados, não para de realizar.

• A nefasta influência de Jari está se desfazendo…
Todas as suas realizações mais terríveis na Terra vão perdendo gradativamente o charme: as grandes cidades, a ciência positivista racionalista, a civilização tecnoindustrial, o materialismo restritivo, o realismo sórdido, a ocultação das entidades invisíveis da natureza. Como os povos sábios da floresta na base dos Andes sabem muito bem, o mal tem que agir rápido porque ele sabe que não é eterno. Daí esse seu aparente monopólio atual sobre os acontecimentos, que na verdade representam seus estertores mais acelerados. (A resposta me foi sussurrada ao ouvido direito, o que escuta melhor a água, por Albimiron.)

>>> Finaliza na próxima edição.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho