O funcionamento do mundo

Entrevista com Lygia V. Pereira
Lygia V. Pereira
01/03/2009

Lygia V. Pereira nasceu no Rio de Janeiro, em 1967. Possui bacharelado em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestrado em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorado em Ciências Biomédicas pelo Mount Sinai Graduate School, City University of New York. Atualmente, é professora associada da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Genética, com ênfase em Genética Humana e Médica, atuando principalmente nos seguintes temas: Síndrome de Marfan, modelos animais, células-tronco embrionárias, herança epigenética e inativação do cromossomo X. Lygia é filha de Geraldo Jordão Pereira, criador das editoras Salamandra e Sextante, e neta de José Olympio Pereira Filho, um dos mais importantes editores brasileiros, responsável pelo lançamento de várias obras essenciais da literatura nacional. Foram editados por José Olympio autores como Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Erico Verissimo, Jorge Amado, Fernando Sabino, Monteiro Lobato e muitos outros.

• Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita? E de que forma a literatura apareceu na sua vida?
Que eu me lembre, meu primeiro contato com a palavra escrita se deu através daquelas coleções publicadas pela Edições de Ouro (hoje Ediouro) na década de 70, como A turma do Posto Quatro (criação do escritor e radialista português radicado no Brasil Hélio do Soveral, assinada sob o pseudônimo de Luís de Santiago). Eram uns livrinhos pequenos, lançados não sei se uma vez por mês. Eu lia muito daquilo. Antes disso, tive muito contato com a palavra escrita lida para mim, pela minha mãe (Regina Pereira) e pelo meu pai. Minha primeira referência eram aqueles livros do Dr. Seuss (o escritor Theodor Seuss Geisel), The cat in the hat, por exemplo. Quanto à literatura, já nasci inserida nela. Minha família inteira é de editores. Meu avô era o editor José Olympio.

• Que espaço a literatura ocupa, hoje, no seu dia-a-dia? E de que forma ela influencia o seu trabalho como cientista?
Eu lia muito até ter duas filhas e ter que administrar as funções de ser mãe e esposa, trabalhar e cuidar da casa. Hoje em dia, só consigo ler quando saio de férias e faço alguma viagem mais longa de avião. Aí, a literatura é um prazer enorme. Mas tenho que ler muita literatura científica. Passo o dia inteiro em frente ao computador, lendo artigos científicos e e-mails, me comunicando de alguma forma. E exerço a literatura sob a forma de textos de divulgação científica. São textos em que você tem que misturar a ciência a uma forma interessante de transmiti-la ao público leigo.

• Que pontos em comum você vê entre ciência e literatura?
A ciência também é transmitida pela forma escrita, mas se trata de um texto muito árido. Acho que ela poderia ganhar muito com a literatura na medida em que as pessoas escrevessem mais sobre ciência de uma forma mais gostosa de ser lida. Hoje, tem muito disso. Há muita literatura científica, muita gente tentando escrever ciência para o grande público.

• Quais seus livros e autores prediletos?
Li muito Gabriel García Márquez e Isabel Allende, A casa dos espíritos. O menino do dedo verde, de Maurice Druon, é um livro lindo da década de 50, uma verdadeira poesia, que até hoje, de vez em quando, ainda releio. Dos mais contemporâneos, gosto de Miguel Sousa Tavares, um português maravilhoso que escreveu Equador, um livro ótimo.

• Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Minha rotina é o tempo livre ― que hoje em dia me é extremamente escasso. Tenho mais tempo quando estou de férias, ou durante o fim de semana, quando tenho que viajar ou ficar muito tempo em um avião. Os livros que leio, escolho principalmente por indicação da minha família. Tendo essa família de editores, há sempre alguém lendo alguma coisa muito interessante e atual.

• Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Uma função prática: a gente só aprende a escrever lendo. A literatura tem uma função muito pragmática em relação à ortografia. É impossível decorar todas as regras para se escrever direito. Então a gente aprende ortografia lendo. E a literatura também nos ajuda muito a nos expressar. Pelo seu exemplo, a gente vai aprendendo a colocar nossas idéias no papel. Além das diversas formas e estilos de colocá-las no papel.

• Como você reconhece a boa literatura?
Não sei. É muito difícil falar de uma boa literatura. Pode haver várias boas literaturas. E há várias boas literaturas de que você não vai gostar, e outras boas literaturas de que você vai gostar. Reconheço a boa literatura por ser uma forma de expressão muito rica, uma forma muito rica de se demonstrar e descrever sentimentos ou situações. É a literatura que nos transporta para algum lugar, que nos desperta emoções ― emoções ruins, como em O matador, de Patrícia Melo, ou boas, como num livro de Isabel Allende ou García Márquez. É a literatura que vai nos fazer pensar. O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, foi um livro que, para mim, teve esse impacto.

• A literatura já lhe causou grandes prejuízos, decepções ou alegrias?
Prejuízo, nenhuma literatura me causou. Decepções, às vezes. Volta e meia, você acha que vai ler um livro bom e ele é chato. Não sou apegada. Se eu acho um livro difícil ou chato, eu o abandono imediatamente. E a literatura nos traz principalmente alegrias, pois é uma forma maravilhosa de entretenimento e enriquecimento.

• Que tipo de literatura lhe parece absolutamente imprestável?
Literatura absolutamente imprestável é um termo muito forte. Mas acho que absolutamente imprestável é tudo que for mal escrito, que não usar a linguagem de uma forma correta ou rica. É muito difícil, porém, falar o que é imprestável. Para mim, pode ser uma coisa. Para outra pessoa, pode ser outra.

• Que grande autor você nunca leu ou mesmo se recusa a ler?
Nunca li Guimarães Rosa, que é um grande autor. Tenho medo de ler Grande sertão: veredas. O pouco que li me assustou, pelo formato e pela linguagem. Nunca tentei. Não é que me recuse a ler. Não tive coragem de ler o livro, apesar dos relatos de quão maravilhoso ele é.

• Que personagem literário mais a acompanha vida afora?
Tistu, o menino do dedo verde, pela capacidade que ele tinha de fazer brotar o mais belo por onde passasse.

• Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
Os brasileiros devem ler ou reler urgentemente A revolução dos bichos, de George Orwell. É uma coisa que se repete ao longo da história da humanidade. Essa revolução dos bichos é algo que talvez a gente já tenha vivido muito, ou esteja vivendo com o PT no poder. Todos esses escândalos e mensalões me lembram muito aquilo. Por isso, acho muito interessante ele ser relido. Outro livro é Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Escrito na década de 30, é um livro de grande capacidade de previsão. Previu coisas que a gente, hoje, tem de fato que discutir seriamente. Já saiu do âmbito da ficção científica.

• Como formar um leitor no Brasil? E um cientista?
O que forma um leitor é o exemplo, é o que se faz em casa. Não adianta querer forçar seu filho a ler se você não lê, se ele não percebe que isso é uma prática normal, natural da sua casa. Não é só ver televisão. Assim, ele vai entendendo os prazeres da leitura. E, para formar um cientista, temos que manter acesa a chama da curiosidade infantil. Toda criança tem um quê de cientista, na medida em que ela tem aquela curiosidade ingênua de querer saber o porquê de tudo e como tudo funciona. O cientista mantém isso e vai atrás dessas respostas. Então, esse questionamento do funcionamento do mundo é um bom começo.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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