A conta-gotas

Entrevista com Rafael Cortez
Rafael Cortez
01/02/2009

Rafael Cortez nasceu em São Paulo, em 1976. É jornalista, ator e músico. Iniciou sua carreira no teatro, com o grupo Quatro na Trilha. Já foi assessor parlamentar, produtor teatral e também de circo e festas infantis. Possui DRT de palhaço. Como músico, lançou em 2005 o álbum Solo, somente com composições próprias para violão clássico. Atualmente, Cortez é repórter do Custe o que custar (CQC), programa televisivo da Band, que mistura jornalismo e humor nas noites de segunda-feira.

Na infância, qual foi seu primeiro contato marcante com a palavra escrita?
Acho que nunca me recuperei da sensação indescritível que foi ler Meu pé de laranja lima, do grande escritor José Mauro de Vasconcelos. Obviamente, esse não foi meu primeiro encontro com a palavra escrita, mas foi — definitivamente — o maior da minha infância. O livro me tocou de tal maneira que passei muitos dias desolado. Me doeu demais toda a pobreza e a crueldade dos homens apresentada na obra, e a perda da inocência infantil foi ainda mais dolorosa. Custei muito a desvencilhar a realidade da ficção naquele contexto, e saber que a trama bebia de histórias verídicas, acontecidas com o autor, mexeu muito comigo. Na época, busquei o máximo de informações sobre José Mauro. E foi com pesar que soube que ele havia falecido em 1984. Foi uma atendente da Folha de S. Paulo quem me contou, pelo telefone. Me pareceu a pancada final na história que eu tinha acabado de ler: aquele menino que tanto sofreu no livro se tornou um homem que morreu antes de me conhecer e me confortar com uma nova versão dos fatos — algo que, para mim, deveria ter existido.

E a literatura? De que forma apareceu na sua vida?
Eu e meus irmãos sempre fomos estimulados a ler por nossa avó materna. Desde muito cedo, ela nos reunia em seu apartamento para ler clássicos de Monteiro Lobato. Aos poucos, nos apresentou obras da mitologia grega, contos dos Irmãos Grimm e diversas fábulas de La Fontaine. Isso nos despertou um interesse imediato pela leitura. Minha avó também nos incentivou a escrever bem e bastante. Lembro de minha época de vestibular: eu tinha aulas bem puxadas de redação em sua casa. Me recordo de ter escrito cerca de dez textos diferentes sobre a morte do antropólogo Darcy Ribeiro. Ela queria aprimorar cada vez mais a minha escrita, da mesma maneira que estimulou muito minha vontade de ler o tempo todo.

Que espaço a literatura ocupa no seu dia-a-dia? E de que forma ela influencia o seu trabalho no teatro e na televisão, por exemplo?
Infelizmente, leio bem menos do que gostaria. Tenho que produzir muito e me desgasto bastante intelectualmente. A leitura me ajuda a reciclar idéias e expandir meus horizontes de criação, mas ultimamente chego muito cansado a alguns livros. Opto por permanecer fiel à literatura por meio de obras mais leves. E não deixo de me atualizar jornalisticamente com os periódicos que tenho em mãos. De todo modo, boa parte das melhores coisas que criei no teatro e na tevê nasceu sob a influência de bons filmes, e não de livros. Não sei explicar a razão, mas decerto não é nada depreciativo. No entanto, muitas de minhas composições para violão-solo se inspiraram em títulos literários. Tenho um CD independente no qual pelo menos cinco das nove músicas que compus nasceram após a leitura de bons livros, como Morte em Veneza, de Thomas Mann; Contos da alma, de Alma Welt e Guilherme de Faria; Nara Leão — uma biografia, de Sérgio Cabral; e O lugar escuro, de Heloisa Seixas.

Você lançou audiolivros de Machado de Assis. Como humorista de tevê, como percebe o humor em Machado?
A cada encontro com meu público por conta do lançamento desses audiolivros, reitero: Machado podia ser mais ácido, irônico e debochado do que todo o CQC junto, se quisesse. O capítulo 30 de Dom Casmurro, intitulado O Santíssimo, mostra um pouco disso. O personagem Pádua aparece praticamente fazendo papel de bobo. Ele compete com um moleque, Bentinho, por uma posição de destaque em um ritual religioso. No entanto, Machado faz esse deboche com extrema elegância. Ainda em Dom Casmurro, quem há de negar a enorme comicidade de José Dias e seus superlativos?

Quais são seus livros e autores prediletos?
Tem muita coisa que amei ler e vivo relendo. Seria bem difícil descrever tanta coisa. Mas seguem alguns de meus autores e títulos prediletos: Machado de Assis (Dom Casmurro e O Alienista); José Mauro de Vasconcelos (Meu pé de laranja lima, O veleiro de cristal e Rosinha, minha canoa); Thomas Mann (Morte em Veneza); George Orwell (A revolução dos bichos e 1984); meu primo Santiago Nazarian (Olívio e Feriado de mim mesmo); Erico Verissimo (todo O tempo e o vento); Eça de Queirós (O primo Basílio); José de Alencar (Senhora e Lucíola); Manuel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias); Gabriel García Márquez (Cem anos de solidão, Crônica de uma morte anunciada e Notícias de um seqüestro). Gosto de muita coisa de Luis Fernando Verissimo, de quase tudo de Nelson Rodrigues e de dezenas de livros de jornalistas. Destaco Abusado e Rota 66, de Caco Barcelos; A sangue frio, de Truman Capote; muita coisa de Ruy Castro, como as biografias de Nelson Rodrigues e Garrincha; Fernando Moraes (Olga), Lira Neto (Maysa: só numa multidão de amores) e muitos outros.

Você possui uma rotina de leituras? Como escolhe os livros que lê?
Atualmente, estou apaixonado por biografias. Talvez por andar muito ansioso e irrequieto. Logo, gosto de ver uma vida inteira passar diante dos meus olhos em algumas horas. Leio muito em aviões, hotéis e, quando consigo, um pouco antes de dormir.

Você percebe na literatura uma função definida ou mesmo prática?
Posso falar do que ela significa hoje e do que sempre significou para mim na minha vida. Os livros me deram bagagem cultural, repertório de conhecimento, erudição e um passaporte para inúmeras fantasias bem-vindas. Me sinto mais inteligente por ter lido um pouco mais na minha infância e adolescência. Isso obviamente me abriu portas na vida. A literatura, quando bem selecionada, possibilita transformar pessoas em seres dotados de alguma erudição e brilhantismo. No Brasil, ainda vejo mais imposição à literatura do que convicção de que os livros são genuinamente bons e importantes a cada um. As crianças conhecem Machado de Assis sem ter um prévio entendimento de quem ele é e de por que ele é, foi e será sempre importante em suas vidas. Os vestibulares fazem da obrigatoriedade de leituras clássicas um passaporte para o entendimento depreciativo de autores e obras sensacionais. O estudante vai ler Eça de Queirós pensando em tirar uma nota dez, não em aproveitar o que ele escreveu.

A literatura já lhe causou grandes prejuízos, decepções ou alegrias?
Muitas. Como já citei, houve o caso de Meu pé de laranja lima. Doeu muito ler Morte em Veneza também. Por outro lado, foi sensacional descobrir a história de Maysa por meio do texto excelente e da pesquisa irrepreensível de Lira Neto. No entanto, devo confessar: me recordo muito mais dos livros que me fizeram sofrer do que daqueles que me deram alguma alegria. Talvez por sempre ter uma certa afinidade com o drama humano na literatura.

Que tipo de literatura ou de autor lhe parece absolutamente imprestável?
Não gosto nada de livros de auto-ajuda. Posso afirmar que não tolero Paulo Coelho, mas confesso que precisaria conhecer melhor sua obra antes de crucificá-lo. Um livro que comecei a ler e detestei ainda nos primeiros capítulos foi Meu mundo caiu — A bossa e a fossa de Maysa, de Eduardo Logullo. Poucas vezes me deparei com algo tão brega, cafona, feio, mal escrito, preguiçoso e ruim como aquele livro.

Que personagem literário mais o acompanha vida afora?
Me identifico muito com Bentinho, de Dom Casmurro. Mas é o escritor alemão Gustav von Aschenbach, de Morte em Veneza, que mais me provoca identificação. Muitas vezes me sinto incompreendido artisticamente, em busca de uma inspiração como a dele e às voltas com uma paixão fulminante — mas sem acabar morto na Itália.

Que livro os brasileiros deveriam ler urgentemente?
Os brasileiros precisam ler urgentemente os brasileiros. Harry Potter pode ser muito bom, assim como O segredo, de Rhonda Byrne (não, esse não deve ser muito bom), e Crepúsculo, de Stephenie Meyer. Mas é preciso apreciar a nossa produção literária, que é rica e de extremo bom gosto (com exceções, obviamente).

Como a televisão pode estimular o hábito da leitura?
Adaptando obras literárias para as telas em horários nobres. Capitu, da Rede Globo, fomentou o interesse do público por Machado e seu Dom Casmurro. O mesmo aconteceu em outras épocas e por conta de muitas outras iniciativas como essa. Lembro bem de 1985, quando a Globo adaptou O tempo e o vento, de Erico Verissimo, para a tevê. Foi ali que conheci a obra. Anos mais tarde estava devorando todas as páginas dessa grande produção literária em busca dos personagens televisivos que guardei com carinho na memória.

Como formar um leitor no Brasil?
Com paciência. A conta-gotas. Sem dar a eles sempre a obra mais fácil, comercial e popular. Gravei títulos de Machado de Assis em audiolivros, sendo que o meu público do CQC poderia gostar mais de me ouvir lendo alguma comédia mais pop. O público quer e precisa de coisas boas — bons autores, bons livros e filmes, boas músicas e discos. O povo não pode ser subestimado e rotulado. As pessoas são bem mais inteligentes do que supomos. Um leitor se forma com toda essa gama de esforços e o auxílio de novas mídias — as adaptações literárias para a tevê, a internet e os audiolivros exemplificam o que digo.

Serviço
Para ouvir Rafael Cortez lendo O alienista, Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, acesse: www.livrofalante.com.br.

Luís Henrique Pellanda

Nasceu em Curitiba (PR), em 1973. É escritor e jornalista, autor de diversos livros de contos e crônicas, como O macaco ornamental, Nós passaremos em branco, Asa de sereia, Detetive à deriva, A fada sem cabeça, Calma, estamos perdidos e Na barriga do lobo.

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