Revistas literárias da década de 1970 (5)

A revista "Ficção" teve 45 números e se destacou por privilegiar a publicação de autores brasileiros
01/07/2009

2. FICÇÃO
A revista Ficção foi, sem dúvida, “o mais importante centro da produção ficcional” da década de 1970, conforme bem acentuou Miguel Sanches Neto[1]. Durante quase quatro anos, de janeiro de 1976 a setembro de 1979, publicou mais de 400 autores nacionais em seus 45 números[2], a maioria inéditos, alcançando uma tiragem média mensal de 15 mil exemplares, distribuídos em bancas e livrarias. Vários fatores podem explicar o sucesso da empreitada, mas talvez o mais importante deles tenha sido o caráter eminentemente eclético da linha editorial, baseada no critério da qualidade do texto. “Estávamos abertos a todos os que nos procuravam, e, em muitas ocasiões, ajudávamos a rever textos de iniciantes, que precisavam de uma pequena mexida para se tornar muito bons, bons ou razoáveis”, conta o casal Salim Miguel (1924) e Eglê Malheiros (1928)[3], editores da revista, juntamente com Cícero Sandroni (1935), Laura Sandroni (1934) e Fausto Cunha (1923-2004).

Na verdade, a idéia geral da Ficção havia sido ensaiada dez anos antes. Em setembro de 1965, Cícero Sandroni lançava o primeiro número da primeira fase da revista, tendo como “editor literário” Antonio Olinto (1919), e no “conselho consultivo” Austregésilo de Athayde (1898-1993), Elísio Condé, João Guimarães Rosa (1908-1967), Jorge Amado (1912-2001) e Sergio Milliet (1898-1966) — nomes, já se vê, de orientações estéticas as mais diversas. “Sou revista mensal. Publico novelas e contos de autores nacionais e estrangeiros, antigos e contemporâneos, com predominância de trabalhos inéditos. Meu lema? A união de dois caminhos: qualidade e prazer.// Desejo divulgar histórias de alta qualidade e quero ser lida pelo prazer da leitura; além disso, pretendo também ler, pois promovo um concurso de contos”[4]: este o teor do editorial com que a nova publicação se apresentava ao leitor[5].

A proposta básica, de privilegiar autores nacionais, conhecidos e inéditos, mesclando-os a autores estrangeiros, clássicos e contemporâneos, seria seguida à risca. Neste primeiro número, talvez até mesmo por razões estratégicas, Sandroni contempla os medalhões da época — Jorge Amado, Antonio Olinto, Erico Verissimo (1905-1975) e Josué Montello (1917-2006). Mas está no segundo número, publicado em outubro de 1965, o espírito que norteará toda a segunda fase da revista: a aposta incondicional em autores nacionais estreantes ou absolutamente inéditos. Assim, ao lado de Augusto Meyer (1902-1970), Nelson Rodrigues (1912-1980), Adonias Filho (1915-1990) e Sergio Porto (1923-1968), encontramos os ainda pouco conhecidos José Condé (1917-1971), Macedo Miranda (1920-1975) e Osman Lins (1924-1978), todos lançados ao longo da década de 1950, e Geraldo França de Lima (1914-2003), Ariovaldo Matos (1926-1988) e João Antonio (1937-1996), que acabavam de estrear, além de André Figueiredo (1932), vencedor do primeiro concurso de contos da Ficção, marca registrada da revista, que revelaria alguns importantes nomes da literatura brasileira da década de 1970.

Iniciativa retomada
No entanto, aquele não era um bom momento para o surgimento de uma revista que propunha uma reflexão séria a respeito da realidade brasileira. O golpe militar, ocorrido em março de 1964, caminhava para um recrudescimento, que levaria o país a um dos piores períodos de repressão e censura de sua história. Assim, com a edição de apenas dois números, naufragava a experiência da Ficção. Seriam necessários mais dez anos para que a iniciativa fosse retomada. Em 1976, embora ainda em plena ditadura, a sociedade iniciava uma tímida, porém obstinada resistência, principalmente por meio de uma imprensa combativa (a chamada “imprensa nanica”) e da exposição corajosa dos meios artísticos. A literatura surge, assim, como uma poderosa arma de denúncia social — daí, a quantidade de jornais e revistas dedicados à divulgação do conto e da poesia aparecidos naquele momento.

É neste contexto mais favorável que a idéia da Ficção é retomada. É Salim Miguel quem conta: “a segunda fase da revista começou com uma conversa durante um almoço na revista Manchete, onde Cícero [Sandroni] e eu trabalhávamos. Eu lhe disse que estava com um conto para a Ficção (da primeira fase), quando fiquei sabendo que a publicação havia sido interrompida. Ele me deu sucintos esclarecimentos e, poucos dias depois, em outro almoço, me disse que ficara pensando: por que não retomávamos a idéia da revista? Retruquei com um ‘por que não?’ Isso ocorreu em meados de 1975. Logo marcamos uma reunião para a casa de Cícero, convidando também o Fausto Cunha. Ao se encerrar a reunião, estávamos com o projeto da revista mais ou menos definido. Tudo caminhou conforme o combinado, e em janeiro do ano seguinte aparecia o primeiro número, com uma tiragem de 15 mil exemplares, e o propósito de, durante os 12 primeiros números, um ano completo, não repetirmos autor, o que foi facilmente conseguido pois andávamos em plena inflação do conto em todo o País”[6].

O editorial do primeiro número da segunda fase, de janeiro de 1976, contém todo um programa estético e político, que os editores Salim Miguel e Eglê Malheiros, Cícero e Laura Sandroni e Fausto Cunha manterão ao longo dos anos com uma impressionante coerência. “Ficção não se prenderá a escolas, estilos, ou grupos literários. Ao autor nacional, que está fazendo a ficção dos tempos atuais, escrevendo no idioma de hoje, será reservado o maior espaço da revista. Mas aqui também estarão presentes os bons escritores estrangeiros e os ficcionistas do passado. Seções como resenhas de livros, assinadas pelos melhores críticos, registro, noticiário, correspondência e outras, completam este número da Ficção, que veio para ficar”[7]. Figuravam, neste primeiro número, no “conselho editorial consultivo”[8], André Figueiredo, Hélio Pólvora (1928), Mário Pontes (1932), Muniz Sodré (1942) e Juarez Barroso (1934). Este conselho permanecerá o mesmo até o último número, à exceção de Barroso, que, morto em agosto de 1976[9], será substituído, a partir do nº 12, de dezembro de 1976, por Valdomiro Santana (1930).

O corpo de correspondentes, que tem início com Caio Porfírio Carneiro (São Paulo), Moacyr Scliar (Porto Alegre), Raul Caldas Filho (Florianópolis), Wander Piroli (Belo Horizonte), Esdras do Nascimento (Brasília, até o nº 18, quando dá lugar a José Roberto Viana), Ricardo Noblat (Recife) e Sônia Nolasco Ferreira (Nova York), paulatinamente é ampliado para abarcar quase todas as capitais brasileiras. Assim, a partir do nº 4 são incorporados Claudio Lacerda (Curitiba), Basileu Pires Leal (Goiânia, até o nº 19, quando o substitui Miguel Jorge), João Ubaldo Ribeiro (Salvador, até o nº 18, e Ruy Espinheira Filho, do nº 25/26 em diante), Luiz Gonzaga Rodrigues (João Pessoa, até o nº 15, e Anco Márcio após o nº 24). No nº 8 entra Francisco Miguel de Moura (Teresina), no nº 11, Antonio Girão Barroso (Fortaleza) e Edson Gomes (Bela Vista – MT), e no nº 14, Rubens Jambo (Maceió). Clodomiro Monteiro (Rio Branco), Antonio Carlos Viana (Aracaju, até o nº 24, quando cede o lugar para Maria Matildes dos Santos) e Fernando Tatagiba (Vitória), passam a colaborar a partir do nº 17, e Marcos Kruger (Manaus), do nº 19.

Uma importante inovação feita pela Ficção foi o pagamento pelos textos publicados, coisa rara em veículos literários ainda hoje. “Várias vezes nos perguntaram quem estava por trás da revista, pelo fato de remunerarmos os colaboradores”, afirma Salim Miguel. “A revista se sustentava graças aos assinantes, à venda avulsa e aos anúncios de algumas empresas e instituições, que, para falar com franqueza, não esperavam retorno publicitário, mas faziam isso apenas para ajudar a publicação a se manter. Além disso, cada um dos editores entrou com uma importância inicial que nunca foi recuperada”[10].

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Notas
[1] Ficção – histórias para o prazer da leitura – uma antologia. Belo Horizonte: Editora Leitura, 2007, s/pag.

[2] Embora a numeração da revista vá de 1 a 45, foram publicados 38 volumes, já que quatro aparecem com numeração dupla (25/26, 29/30, 38/39, 40/41), um com tripla (43/45) e, curiosamente, um simplesmente não existe, o 42. Além disso, foram editados dois volumes extras, dedicados à ficção infanto-juvenil (dezembro de 1977) e aos quadrinhos (janeiro de 1979).

[3] Em depoimento ao autor.

[4] Ficção – histórias para o prazer da leitura. Rio de Janeiro: Companhia Brasileira de Artes Gráficas. Nº 1, setembro de 1965, p. 1.

[5] Mesmo a questão do formato, que Sanches Neto reputa como um dos motivos do sucesso da revista junto ao público, já se encontra relativamente resolvida na primeira fase, que usa o tamanho 14 cm por 19 cm – que passa para 14 cm por 21 cm na segunda fase. Assim como a caricatura, que ocupará lugar de destaque na segunda fase, já tem seu espaço garantido nestes dois únicos números da primeira fase, no traço genial de Jaguar.

[6] Em depoimento ao autor.

[7] Ficção – histórias para o prazer da leitura. Rio de Janeiro: Editora Ficção, Volume II, nº 1, janeiro de 1976, p. 3.

[8] “O conselho tinha atribuições definidas e nos ajudava quando tínhamos dúvidas a respeito de alguns contos”, explica Salim Miguel.

[9] Sua morte, muito lamentada pelos editores, mereceu comovente registro de Cícero Sandroni (Ficção – histórias para o prazer da leitura. Rio de Janeiro: Editora Ficção, Volume II, nº 9, setembro de 1976, p. 87).

[10] Em depoimento ao autor.

Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

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