O sentimento de desamparo, disseminado pela pandemia da Covid-19, me leva de volta à leitura de Quero minha mãe, pequeno livro que a poeta Adélia Prado publicou no ano distante de 2005. Estamos todos em busca de um colo — e Adélia nos fala desse colo. Em uma prosa avarenta, com 31 capítulos brevíssimos, ela enfrenta nossa inadiável solidão. “Acho que é um livro sobre a orfandade”, avaliou, em uma entrevista, a própria Adélia, ciente de que ao autor também escapam os melhores segredos de sua escrita. “Quero a minha mãe é o que falam as criancinhas e as pessoas na hora da morte. É o que falamos a vida inteira, quero proteção e sentido.” Que outras coisas, em nossos tempos escuros, nós não paramos de pedir?
Mesmo em busca de um sentido, Adélia precisa se contentar, apenas, com pedaços de sentido. Nem as palavras nos dão tudo. Será mesmo um romance? Quero minha mãe dissolve os fundamentos clássicos da grande narração no bolor difuso da palavra só balbuciada. Faz, da prosa, gagueira. Os capítulos não trazem numeração, as frases e parágrafos são curtos, ofegantes. O ritmo arfante da prosa de Adélia Prado se manifesta, ainda, nas quebras bruscas, nas elipses angustiantes, nos saltos no tempo.
Se Adélia se interessa pelo tema da hipocondria (afecção em que o sujeito procura obsessivamente em si doenças inexistentes), é só porque nela se metaforiza algo essencial à condição humana — e não só um sintoma psíquico. A personagem Olímpia vive a intuição de uma doença grave — medo que, enfim, parece se concretizar. O livro relata o modo vacilante como ela enfrenta seus temores. Mas não é com morbidez que a poeta se interessa pela hipocondria. Ela a toma, mais que isso, como uma marca do humano. “Nascemos órfãos, hipocondria, doença geral ou imaginária são apenas detonadores. Trazem à luz nossa dramática condição”, ela nos diz. “Só não somos trágicos porque há caminhos.”
Para Adélia, a poesia, como um exercício espiritual, promove a elevação, e isso independe de seus conteúdos. “É forma pura, não é enredo, não é assunto. Eu não trabalho com aspectos bestiais, ou sublimes. Escrevo sobre o humano, onde tudo está.” Poesia em prosa, ou prosa poética, essas classificações não a interessam. Adélia reafirma, mais uma vez, o exercício da poesia como uma epifania — isto é, uma manifestação do divino. Em vez de orações, ou de cânticos, ou mesmo de línguas estranhas, o poema. “A poesia rasga, ou desvenda, porque é naturalmente epifânica”, ela justifica. “É isto o salvífico (o que traz ou produz salvação), não a coisa ou o assunto.”
Olímpia luta para se simplificar enquanto enfrenta o medo da morte. Debaixo do chuveiro, em plena madrugada, ela começa a rir. Alegria ou pavor? A ameaça do câncer a ronda e a tira de si. Mais tarde, ultrapassado o terror, rememora sua vida. Essas lembranças são o livro de Adélia Prado. “Quando já estava doente e não sabia, comecei a me sentir suja, muito suja, com precisão de expelir uma coisa que figurava uma bola preta me empestando”, diz. Doença real ou medo? No desespero, ela trata de procurar Elza Mirtes, uma mulher que cura com as mãos. “O que lhe aconteceu?” — Elza pergunta. “Nada de especial, só um medo enorme, só isto e uma aflição que não me dá sossego.” É da aflição, também, que Adélia arranca sua escrita.
Um bom nome para a hipocondria: aflição. Ele move o medo do corpo e o eleva, ou rebaixa, para uma esfera ainda mais forte, embora menos visível: a das crenças. Depois de ouvi-la, Elza Mirtes lhe prescreve um tratamento imprevisível: “Você precisa perdoar sua mãe”, a mulher recomenda. Tomada pela lembrança da mãe, Olímpia medita: “Cinquenta anos de sua morte e pela primeira vez me sentia a um passo de minha mãe, quase a tocava”. Então, para além da hipocondria e do próprio câncer, a figura da mãe se impõe como um sinal de vida.
Olímpia ainda era menina quando ajudou a mãe a morrer. Mulher feita, transformou-se em “uma comedora de livros”. As leituras a levam a concluir que “a realidade é horrorosa”. Mas logo se corrige: “Bem horrorosa, no sentido de formidável também”. Em contraste com o que lê, reconhece sua vida pequena, limitada. “O corpo me limita, a pele, a casa, o quarto, a roupa, os óculos, o sofrimento de dona Luizinha que não entende eu não comparecer às suas bodas de ouro.” É nesse corpo oprimido por tantos limites que a hipocondria se instala, como um sinal de algo maior. Um sintoma não de uma doença, mas de uma falta.
Rememora, então, uma viagem que fez ao Peru. “Na volta tive depressão, por causa das múmias, uma delas com todos os dentes”, recorda. A lembrança da viagem ainda a esmaga. Mas a imensidão dos Andes também a ajudou a se ver com mais nitidez. “Olhava tudo de fora e minha culpa diminuía, nitidamente percebendo minha condição de criatura.” Depois de visitar Cuzco, ela se pergunta: “Víramos uma realidade, fendera-se uma cortina. Víramos o quê?”.
Essas dúvidas exacerbam o sentimento de orfandade. Desamparo que a autora Adélia remedia com a literatura. Às vezes, dizem que a poesia de Adélia Prado é “derramada” ou “sentimental”. Nada disso a perturba. “O único dique da arte está na sua própria natureza, que é a forma”, Adélia diz. “O resto são diferenças de temperamento, assunto para a psicologia e não para a literatura.” A seu ver, é a construção deste dique que forma o estilo pessoal. Mas isso não é uma escolha, e sim uma escuta. Adélia explica: “O trilho da obra vem com ela, não me cabe escolhê-lo”.
Quanto aos sentimentos, a poeta não cogita excluí-los ou adorná-los. “Quem sataniza os sentimentos como pragas da literatura está no ofício errado, porque arte se faz com sentimento”, afirma. “Sentimentalismo e pieguismo, estes sim, são alienações, formas infantis de lidar com a coisa, são pragas, sim.” Daí a grande atenção pelo real, a verdadeira paixão pela vida que norteiam sua escrita. “Eu não tenho medo do sentimento, caminho nele tranquila, mesmo porque sendo a palpitação da vida é mão única para a arte.” E se é mão única, um sentido há.