Categorias poéticas alternativas à ideia de barroco (1)

A prática poética reconhecida hoje como “barroca” não era chamada assim por preceptistas e poetas do período, falava-se sobretudo em arte da “agudeza”
Ilustração: Aline Daka
01/02/2021

Como é sabido, o termo “barroco” é usado em situações muito variadas, com sentidos bastante diversos. O uso mais antigo, e, portanto, mais próximo dos artistas aos quais se aplicava, era depreciativo. A partir do final do século 19 e das primeiras décadas do 20, entretanto, as diversas teorias surgidas sobretudo por inspiração de críticos alemães — Burckhardt, Wöllflin, Weisbach, etc. —, se encarregaram de estabelecer o prestígio do estilo. De lá para cá, a noção de “barroco” se estabeleceu de forma relativamente estável como categoria positiva do imaginário cultural, embora aplicada a objetos e valores artísticos bastante díspares.

O que vou procurar fazer aqui, entretanto, é transferir esse imaginário positivo, mas um tanto dispersivo, ao plano seco de categorias intelectuais vigentes no próprio período das obras. Não se trata de apresentar uma teoria do “barroco”, mas apenas especificar algumas categorias retóricas e poéticas presentes nas principais preceptivas dos séculos 16 e 17, relacionadas ao estilo posteriormente chamado de “barroco”.

A primeira delas é a de agudeza.

A prática poética reconhecida hoje como “barroca” não era chamada assim por preceptistas e poetas do período. No caso da Península Ibérica, falava-se sobretudo em arte da agudeza; na Península Itálica, em arguzia. O primeiro sentido do termo agudeza era sutileza — sinonímia registrada no Tesoro de la lengua castellana, de Sebastián de Covarrubias Orozco. Além de conter essa propriedade sutil, a agudeza definia-se como objeto da faculdade do engenho. Eis porque, historicamente, fala-se em arte engenhosa para referir as obras posteriormente chamadas de “barroca” ou do “período barroco”.

Mas há uma diferença relevante no emprego dos termos engenho e agudeza. Entende-se a agudeza como sendo o objeto ou finalidade da faculdade do engenho, e a faculdade engenhosa, por sua vez, como a parte do intelecto especialmente voltada para a beleza. A noção de faculdade, aqui, vale em sua acepção latina, que não é idêntica à concepção aristotélica de dýnamis, que supõe uma virtualidade neutra, uma potência do ser e do não-ser que refere a possibilidade de executar determinado ato, sem implicar no ato ou na capacidade do ato. Já na acepção latina e ciceroniana, faculdade refere uma capacidade de execução, uma força realizadora positiva.

Dentro das chamadas faculdades intelectivas, a faculdade do engenho é a que visa particularmente à produção da beleza, em suas várias circunstâncias. Assim, nas preceptivas do engenho, este se introduz como um terceiro na oposição antistrófica aristotélica entre “dialética” — a técnica de produzir argumentos convincentes e raciocínios adequados por meio do discurso — e “retórica” —, a arte de persuadir considerando as diferentes circunstâncias em que se encontram o orador e o auditório. Mais que prover o discurso do raciocínio correto e da persuasão circunstancial, o engenho dispõe-se a operar tecnicamente em torno da beleza e de seus efeitos. No centro dessa operação está justamente a agudeza, enquanto objeto por excelência da faculdade de engenho.

Entre os vários tipos de agudeza previstos pelos preceptistas, o principal é o da agudeza de artifício ou artificiosa, que busca a formosura sutil —, o que obviamente está muito distante da valorização pós-romântica do “espontâneo” e “natural”. A fórmula aguda completa poderia ser enunciada da seguinte forma: o objeto mais engenhoso e a formosura mais sutil são permanentemente buscados pelo intelecto mais artificioso.

O jesuíta aragonês Baltasar Gracián, na sua célebre Agudeza y arte de ingenio, de 1642, admite três categorias de “agudeza de artifício”: conceitual, verbal e gestual. A primeira e mais importante é a agudeza de conceito, onde reside justamente a sutileza de pensamento. Nos seus termos, a agudeza de conceito é um ato intelectual capaz de descobrir as correspondências mais sutis entre os objetos. Apenas um artista conceituoso está apto a descobrir relações recônditas e difíceis entre objetos distantes ou mesmo extremos do pensamento.

Para Gracián, a agudeza conceitual alcança o grau mais alto de perfeição artística, constituindo-se numa espécie de raio de luz gerado pelo entendimento do autor. A metáfora é elucidativa: a agudeza é raio — um tipo de inteligência que produz iluminação imediata, mas de tal intensidade que também pode cegar e produzir aporia. Assim, um autor agudo necessariamente surpreende os seus ouvintes ou leitores, e, diante do que ele diz, já não é possível continuar a conversa da mesma maneira que vinha se desenrolando até então: todo discurso é paralisado diante da luminosidade violenta e imprevista imposta pela agudeza.

Nesse processo de estabelecimento de analogias entre objetos extremos do pensamento, ocorre o concurso fundamental do juízo, um tipo de inteligência especialmente voltada para a análise de conceitos e de objetos, de modo a distinguir suas propriedades qualitativas e quantitativas. Quer dizer, o juízo analisa os conceitos, estabelecendo semelhanças e diferenças entre eles. Além dele, a inteligência versátil colabora na produção da agudeza ao sintetizar os objetos comparados pelo juízo numa forma nova e inesperada.

Não há precedência epistemológica entre juízo e versatilidade. A agudeza opera analiticamente com o juízo, separando e descrevendo cada objeto comparado em particular, e opera sinteticamente com a versatilidade, juntando-os novamente numa forma inesperada, provocando espanto, surpresa e, enfim, meraviglia — outra maneira de referir o efeito agudo, como o faz o também o jesuíta Emanuele Tesauro, autor do Cannocchiale aristotelico, de 1654.

Como disse antes, além da agudeza de conceito, as preceptivas falavam também em agudeza de “palavra”, ou agudeza “verbal”, que consiste em estabelecer correspondências com base nas relações sonoras ou gráficas entre as palavras. São consideradas inferiores à agudeza de conceito porque dependem dos sons e da grafia da língua particular em que se inscrevem, e, não podendo ser traduzidas adequadamente, a sua eficácia se restringe a essa língua original, diferentemente da agudeza conceitual, que operando com ideias, não conhece esse limite linguístico.

Exemplo óbvio de agudeza verbal são os trocadilhos e anagramas. Feitos com sucesso em determinada língua, numa outra, entretanto, podem não funcionar, pois os termos são diversos e podem não guardar relação alguma em termos de material fônico ou gráfico. Roma não é anagrama de amor em todas as línguas, o que invalida a sua aplicação universal.

Há ainda um terceiro tipo de agudeza a mencionar: a chamada agudeza de ação. Está associada à parte retórica da actio ou pronuntiatio, que estuda formas persuasivas de desempenho cênico, gestual ou declamatório. O porte corporal, o tom da voz, o movimento dos braços ou das mãos, o timing das proposições ou da apresentação de elementos visuais, a incorporação do cenário, etc. — tudo conta, tudo é objeto do exercício engenhoso.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho