O livro que é uma biblioteca

“Obrigado”, de André Neves, faz-se mediador de outras obras e debate o lugar do leitor na cadeia de enunciados disponíveis na sociedade
Ilustração: André Neves
01/02/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Na cultura humana, o livro é um objeto de legado e gratidão. Síntese da partilha de experiências, abriga o conhecimento produzido pela espécie, incluindo as inquietações que a mobilizam. Nesse campo, a representação pictórica e a poesia seriam das mais antigas manifestações. A primeira encontra-se em evidência nas paredes das cavernas, em registros pré-históricos. A segunda nos vem em documentos escritos que coletaram parte de uma produção oral riquíssima, datada de alguns milênios. De lá para cá, configura-se um percurso de altos e baixos em termos de salvaguardar o que definiria o humano, no entendimento de uma tradição colocada em diversos suportes, dos quais o livro é um dos mais relevantes. Nessa trajetória, artistas, cientistas e pensadores empenham-se em pontuar influências, assinalando os nomes e o ideário de sua afinidade, em reconhecimento de uma cadeia de enunciados, cujos elementos precedentes viabilizam as realizações subsequentes.

Obrigado é uma homenagem a homens e mulheres que alimentaram a vida do leitor André Neves, possibilitando desde cedo o exercício da sensibilidade e garantindo o espaço vital da arte na existência. Ao fazê-lo, constrói uma pequena antologia, na qual nomes, temáticas, léxicos dos poetas mais representativos na experiência do leitor brasileiro concedem, nas palavras de Roger Mello, uma viagem até “Hilda, Mario, Carlos, Cecília, João, Paulo, José, Ferreira, Manuel, Manoel, Cruz, Patativa, Cora, Murilo, Vinicius”.

É um livro, como afirma o autor, para “infâncias de todas as idades”, ressaltando que não escreve só para crianças, mas “é a criança que sempre está dentro daquilo que escrevo”. Em uma estrutura iniciada com imagens que tomam o espaço da página dupla e pouquíssimo texto, apenas a epígrafe de Gullar e a indagação presente na conjunção “se”, seguida da amplidão das reticências, Obrigado toma a meio de caminho uma via material mais tradicional e aparentemente ortodoxa, marcada pela separação entre o fabular e o icônico por meio da dobra do livro. Dizemos aparentemente, pois ortodoxo é algo que não pode ser dito em relação a este projeto, cujo ponto de partida tem no discurso intertextual e metalinguístico a forma de alcançar novas leituras de poetas consagrados.

Por todo o objeto, espalham-se elementos verbais e visuais em diálogo com obras e autores, em interpretações e apropriações. Mostram-se também inúmeras pistas, que não apenas conectam o leitor experiente aos poemas originais, mas instigam o leitor em formação a descobertas, conduzindo-o à percepção de que versos e ilustrações constituem uma biblioteca de referência. Na intertextualidade e no diálogo, arma-se um jogo sofisticado:

Se Manuel brincasse
com palavras inventadas
construiria uma cidade
que não cansa de existir.
Blém
Belém
Blém

Nesse ritmo, o sujeito está sempre posto em face da possibilidade de uma ação, a se complementar por elementos da respectiva identidade poética:

Se Carlos um poema procurasse… 

Se Cecília
unisse
o tempo
nas palavras…

Se Hilda inventasse versos
em noites de lua cheia…

Embora não estejamos de forma estrita no terreno da ficção, é possível identificar um protagonista e um enredo: o menino, presente na primeira e na quarta capa, nas páginas iniciais e finais, é leitor disposto a mergulhar nos rios de uma verbo-visualidade, a banhar-se no legado recebido como propulsão para realizar novas obras. Findos tantos “Se…”, o formato em que texto e imagem compartilham o espaço da página dupla é retomado. Chega-se ao ponto de conflito e à imediata solução:

Ah! Se todos adormecessem?

Talvez esses poemas ficassem inacabados.

Quem sabe assim você escreveria
outros versos. 

Palavras
com imagens
sonhadas.

O artista, leitor de ontem desdobrado em autor, confessa: “Que as minhas palavras, junto às desses escritores, possam tornar o ato de ler apenas gratidão”. Nessa construção verbo-visual do objeto-livro, que oscila entre dissociação e associação de texto e imagem no espaço das páginas, a leitura, no entanto, se faz a todo tempo de forma interligada entre as linguagens, solicitando o trabalho do leitor para a construção do sentido.

Nas ilustrações que acompanham as vozes poéticas, pessoas — na sua grande maioria crianças — exploram diferentes ambientes, sempre com livros nas mãos. Na metalinguagem estabelecida, os leitores e livros desenhados dentro do livro remetem diretamente, mas não de forma redundante, ao universo literário dos autores homenageados, transformando as imagens em súmula das obras referenciadas, valendo-se de um viés surrealista. Com o estabelecimento de conexões contínuas, a todo instante conduzindo a outras leituras, Obrigado se mostra como uma analogia ao hipertexto, alcançando “(…) o sonho grudado no olho/ agitando a fantasia”, mencionado no poema ofertado ao leitor curioso, que explora a materialidade do suporte, e descobre, por trás da orelha, que a leitura não se encerra nas páginas.

O mergulho na poesia brasileira e a visita a essa pequena biblioteca traz ainda um deslumbre pelo processo criativo que proporcionou existência ao objeto. Desde a parte pré-textual, mas com destaque após o término da narrativa, miniaturas das páginas em diferentes estágios de desenvolvimento das ilustrações possibilitam acompanhar a tradução de uma concepção em resultado final. Junto a citações dos poemas que inspiraram a obra, mostram-se também esboços e material de pesquisa e estudo. Ao final, caricaturas de infância dos artistas somam-se a sínteses biográficas e reflexões sobre o fazer poético.

Obrigado faz-se mediador de outras obras e debate o lugar do leitor na cadeia de enunciados disponíveis na sociedade. Instigado pelo livro que encontra entre os juncos, o protagonista traça hipóteses e se questiona sobre os poetas e sua arte. Na pergunta instaurada em face da possibilidade de adormecimento dessas vozes, vislumbra o perigo da perda de um legado. A resposta imputa ao ouvinte-leitor a possibilidade de nova criação estética, nomeada com o título do próprio livro em questão, em circularidade a unir leitor e autor em um movimento de reconhecimento e de gratidão ativa.

Em um livro ilustrado, cuja destinação principal seria a criança, esconde-se uma teoria do ato de ler, em tudo afinada com o pensamento teórico mais contemporâneo. André Neves trabalha com a perspetiva da abolição de fronteiras em sua arte, na clareza de que a fruição de literatura comporta também a criança e o jovem, o texto e a imagem, sem que sejam necessárias concessões ou subtrações na tessitura estética.

Obrigado
André Neves
Pulo do Gato
64 págs.
Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho