A democracia, num mar de histórias

O ato de narrar explica, organiza e amplia o mundo que nos rodeia e os sujeitos que somos
Ilustração: Maíra Lacerda
01/10/2022

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Literatura não é cartilha, mas ensina. Ensina um punhado de coisas, e liberdade é a primeira delas. Em termos políticos, a liberdade mantém-se em relação direta com a democracia, sistema de governo em que o poder é exercido pelo povo e no qual o uso da palavra é atributo franqueado a todos. A palavra é veículo para expressar, discutir, arrazoar, insurgir, fundar, narrar — sendo este um item de nosso especial interesse. Intrínseco à natureza humana, o ato de narrar explica, organiza e amplia o mundo que nos rodeia e os sujeitos que somos. Construídas por sinais, palavras ou por ambos, as narrativas nos acompanham desde o surgimento da linguagem, estampando-se pelas paredes das cavernas e por outros lugares em que nossos ancestrais estiveram presentes. Em estágio posterior, a transmissão oral das narrativas é exercida como importante atividade identitária e, com o advento da escrita, o livro se agrega como valiosa tecnologia para sua memória e seu armazenamento. Ouvimos, lemos e contamos histórias para manter viva nossa origem e nossa perplexidade em face da existência. No entanto, isso que nos caracteriza como espécie sofre contínuas ameaças, por ser fonte de poder e transformação.

O curso da história exibe repetidas violências contra escritores, alvos de sistemas totalitários, cuja essência está no controle da expressão e estabelecimento de um enunciado único, reputado como verdade. O fundamento de tais enunciados será sempre de base política, ainda que mimetizada em variáveis aspectos, dos quais a religião, em aliança com o poder temporal, ocupa muitas vezes o primeiro lugar. Ditaduras são ditaduras, e o disfarce em geral não é necessário, mas bem-vindo como garantia da verdade posta em circulação, sem concorrentes. Na disputa por poder, as grandes religiões impõem guerras santas, diásporas, torturas, fatwas. Foi uma dessas sentenças de morte que atingiu o escritor indo-britânico Salman Rushdie. Lançada em 1989 pelo aiatolá Khomeini, em razão da blasfêmia por ele cometida em seu livro Versos satânicos, a condenação originou protestos em todo o mundo e demandou gasto de dinheiro público para proteção à vida do escritor que acabou vítima, em agosto último, de sério atentado nos Estados Unidos onde reside. Um dos noticiários ressaltou o fato de que o agressor teria lido apenas duas páginas do livro danado.

Na sociedade ocidental, narrar histórias era uma atividade para o deleite e eventual ação pedagógica, aspectos redimensionados com a chegada de As mil e uma noites à Europa no século 18, que põe foco no aspecto fundamental das histórias para a sociedade. As histórias são poderosos e autênticos recursos para questionar os problemas da espécie e propor possibilidades de convivência que atendam aos ideais presentes na própria concepção do que é ser humano. A potência narrativa advém da síntese entre real e imaginário, o que possibilita um contorno para as aspirações e os enigmas que nos definem. Contar histórias, porém, é um fazer inscrito nas atividades gratuitas, da ordem do dom, geralmente com nenhum ou pouco retorno financeiro aos indivíduos a isso dedicados. Um enraizado consenso social sobre o uso do tempo, questiona, ainda hoje, a utilidade desse fazer: “E pra que servem essas histórias que nem sequer são verdade?” — não é difícil ouvir, e é o mote de Haroun e o mar de histórias, publicado por Rushdie em 1990.

Em clara alusão ao totalitarismo de que o autor é vítima, o romance que crianças e jovens também podem ler versa sobre um famoso narrador de histórias, Rashid Khalifa, cuja inventiva eloquência é subitamente reduzida a uma expressão inarticulada, o que leva Haroun a embarcar em uma aventura para recuperar o poder narrativo do pai. Seres fantasiosos acompanham o jovem nas peripécias que se engendram com rapidez, culminando no confronto entre luz e escuridão, fala e silêncio. Na cidade de Tchup, a fala é cerceada, havendo “um culto do silêncio cujos seguidores fazem um voto de mudez perpétua para demonstrar sua devoção” ao líder Khattam-Shud. Assim, “todas as escolas, tribunais e teatros estão fechados, sem poder funcionar por causa das Leis do Silêncio”.

Em oposição, na cidade de Gup o povo é conversador por natureza, amante de discussões. Esse aspecto, em particular, causará muito espanto a Rashid, no momento da batalha contra os Tchupwalas, pois os Gupis aparentam ser um exército desorganizado, a discutir as ordens do general Kitab, que corre todas as fileiras de soldados, acatando argumentos e contra-argumentos da estratégia proposta, o que provoca inúmeras modificações no plano inicial. A observação crítica cederá, mais tarde, lugar à aprovação: “Os Páginas de Gup, agora que já tinham discutido tudo minuciosamente, lutavam duro, permaneciam unidos […]. Toda aquela abertura, todos aqueles debates e discussões tinham criado entre eles poderosos laços de camaradagem”. Do lado inimigo, ao contrário, muitos dos soldados “tinham de lutar contra suas próprias sombras traiçoeiras! […] seu voto de silêncio e o hábito de manter tudo em segredo os faziam desconfiar e suspeitar um do outro. […] os Tchupwalas não lutavam ombro a ombro, mas traíam um ao outro, apunhalavam um ao outro pelas costas”.

O autor recorre a vários recursos linguísticos da alegoria, que se mostra um adequado recurso estético para a narrativa. O uso de maiúsculas, personificando valores abstratos, a aplicação do itálico — forma de assinalar a apropriação e deturpação autoritária das palavras e o glossário, ao final, que esclarece o sentido hindustani de muitos vocábulos, abrem o espaço para a metalinguagem, e a obra explicita-se como manual do ofício do narrador de histórias e da composição literária. No estreito vínculo entre ética e estética, inerente à literatura, o valor da liberdade e o sentido de respeito à dignidade humana são realçados na obra. O mar de histórias é alusão direta à diversidade de correntes e vozes, que garantem a ordem democrática, feita de fala, diálogo, trabalho permanente, respeito coletivo, esclarecimento constante das situações, batalha incessante contra a escuridão, que “tem seu fascínio: é misteriosa, é estranha, é romântica…”, derrubando “Zonas da Meia-Luz e Muralhas de Força”. Nada que a humanidade não tenha experimentado, não continue experimentando em ameaças de anti-histórias e poluição mortal.

Com o cuidado de não criar nenhuma utopia, o autor não exclui do espaço de Gup situações problemáticas, como a desigualdade de gênero, o excesso de burocracia e atitudes que um tanto discricionárias, mas que logo se consertam. Nada disso impede ou exerce sombra sobre o direito à expressão, síntese da obra. Direito a ressoar nas vozes e nas penas dos que constroem mundos visionários, sem qualquer utilidade prática senão a de ser fiança das memórias e possibilidades da espécie. Sem qualquer caminho que não seja errante em seu destino, tal qual a humanidade que as engendra.

MAÍRA LACERDA
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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