Velhice em voz alta

Autoras propõem representações da velhice como território de sabedoria, de reinvenção e também, por vezes, de reencantamento do mundo
Ilustração: Sumaya Fagury
01/05/2025

A velhice tem sido, por muito tempo, representada como declínio: tempo de perda, de recolhimento, de apagamento da subjetividade. Desde a modernidade, a narrativa ocidental cristalizou a figura do velho — e sobretudo da velha — como alguém que ocupa o fim da linha e não como alguém com um mundo interno rico a ser conhecido. Mas algumas obras contemporâneas têm desafiado esse enquadramento, propondo representações da velhice como território de certa sabedoria, de reinvenção e também, por vezes, de reencantamento do mundo. É o que se observa em Sobre os ossos dos mortos (2009), de Olga Tokarczuk, A corneta (1974), de Leonora Carrington, e Outra biografia, de Rita Lee (2023). Lidas em diálogo com o ensaio A velhice, publicado nos anos 1970, de Simone de Beauvoir, essas obras revelam que esse processo pode ser subversivo.

No século 20, Beauvoir observou que “a sociedade considera a velhice como uma espécie de defeito, como um fracasso do indivíduo”. Nas três obras acima mencionadas, essa percepção é confrontada com inteligência, originalidade e humor.

Em Sobre os ossos dos mortos, a narradora Janina Duszejko, engenheira aposentada que projetava pontes, professora de crianças e tradutora autodidata interessada em astrologia, vive sozinha em uma vila na Polônia onde a caça é ritualizada como prática viril. Considerada uma mulher excêntrica, é desautorizada por sua idade e gênero, em especial quando se recusa a aceitar o silêncio diante da matança de animais e da violência praticada de forma sistêmica. Sua velhice não é passiva — é insurgente. A partir dela, ela age, investiga, escreve cartas, ama, denuncia, e chega a medidas extremas.

Também em A corneta, de Leonora Carrington, a velhice é espaço do que podemos chamar de delírio libertador. Marian Leatherby, mulher de cerca de noventa anos, é internada num asilo, que logo se apresenta com tintas surreais: casas com formatos improváveis, uma torre misteriosa e uma pintura que parece piscar para a protagonista são apenas alguns dos elementos que indicam que estamos adentrando um mundo com dinâmica própria. Ao lado de outras velhas, Marian participa de uma revolução contra a ordem do mundo. A corneta auditiva que recebe de presente — e que lhe permite ouvir novamente — pode funcionar também como metáfora para o retorno da escuta, da voz e da agência.

“Não sei se estou sonhando ou vivendo, e tampouco me interessa”, diz Marian. A frase sintetiza uma recusa ao tempo retilíneo e à obediência da realidade: a velhice, aqui, é portal para o que é mágico, para o que é inquietante.

E, se em Tokarczuk e em Carrington a velhice é fabulação e combate, em Outra biografia, de Rita Lee, o tema aparece não sem dor — ela escreveu o livro nos últimos anos de vida, enquanto convivia com um câncer agressivo e um tratamento doloroso —, mas também com despojamento e humor próprio. A artista, que marcou gerações com seu talento e sua irreverência, narra os últimos anos com ironia, certa leveza e muita lucidez.

A velhice é tempo de se retratar consigo mesma, de falar da doença, da sexualidade, do tédio e da liberdade de não se encaixar mais nas expectativas sociais. “A velhice não é doença. É destino”, escreve Rita Lee. Mas ela mesma mostra que esse destino não é sinônimo de mero encaminhamento para o fim — é campo de novas escolhas, inclusive a de desafiar estereótipos reservados para essa fase da vida.

Nos três livros, a velhice feminina não é domesticada. Ela é barulhenta, radical, sensível. Se, como escreveu Beauvoir, “ninguém se acredita velho até que o outro lhe diga que o é”, essas personagens recusam esse olhar exterior que as envelhece como diagnóstico. Envelhecem em seus próprios termos. Constroem comunidades — com animais, com outras velhas, com amigos — e, ao contrário de se retirarem do mundo, o reocupam com linguagem e presença.

A atriz Fernanda Montenegro, hoje com 95 anos, oferece em suas memórias uma síntese luminosa desse gesto de habitar o tempo com dignidade: “A velhice é o tempo em que a vida já foi vivida e, por isso mesmo, pode finalmente ser olhada de frente, sem o pânico do ineditismo”. Essa sabedoria atravessa também as mulheres aqui mencionadas, que olham para a vida — e para a morte — com a liberdade de quem já não precisa ter que provar algo ao mundo. O que querem é falar, rir, chorar, resistir. E continuar a fabular enquanto estiverem aqui.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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