Somos filhos da época

Como escape ou como confronto, a verdade é esta: toda literatura é política
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/12/2022

Chega ao fim um dos anos mais importantes da história do Brasil desde a redemocratização. Não é exagero dizer que as eleições de 2022 foram um dos acontecimentos mais decisivos que já vivemos no país.

Nossa escolha não foi entre dois homens, que disputavam ideias diferentes, mas entre a democracia e o autoritarismo, entre alguém que acenava para a vida e alguém que nos empurrava para a morte, através da gestão criminosa de uma pandemia que enterrou cerca de 700 mil pessoas, deixando quase 700 mil famílias enlutadas. Através das queimadas na Amazônia, no Pantanal e em outras regiões tão preciosas, das quais deveríamos cuidar como os verdadeiros tesouros que são. Através do deboche, do preconceito, do incentivo e da legitimação de diversas formas de violência. Através do desmonte estrutural que dizimou indígenas e indigenistas, que acabou com o Ministério da Cultura, que ameaçou promover a taxação de livros, que cortou verbas para a saúde, não reajustou a bolsa de pesquisadores — e nem mesmo deu qualquer aumento real para o salário mínimo.

Um governo que negou a ciência, que desrespeitou as leis e as instituições, que nos inundou de mentiras, criando inimigos imaginários, como a temida versão fantasiosa do que seria o “comunismo”, enquanto liberava armas de fogo e trazia o Brasil de volta para o mapa da fome. Segundo pesquisas, 24% da nossa população diz ter comida insuficiente, mais de 30 milhões de pessoas estão em situação de “insegurança alimentar grave”.

Diante da possibilidade de viver mais quatro anos sob uma gestão tão cruel, nós, democratas, lutamos como pudemos, cada qual com seus instrumentos. Os meus sempre foram as palavras. Sempre que me sentia exausta, impotente e com saudade de escrever apenas sobre literatura, cinema ou psicanálise, eu me lembrava de um poema lindíssimo da polonesa Wislawa Szymborska chamado Somos filhos da época — o título dessa coluna é uma homenagem a ele —, e sabia que essa ideia vaga do que seria apenas isso ou apenas aquilo, na verdade, não existia nem nunca existiu. A literatura, o cinema e a psicanálise, assim como todas as coisas do mundo, e talvez mais do que muitas delas, estão atravessadas pela sua época, e a época é política. Assim dizem sabiamente os primeiros versos do poema de Szymborska.

Muitas vezes, buscamos nos livros outros mundos para escapar do nosso. Então retornamos com novas ferramentas para enfrentá-lo ou, ao menos, um pouco mais descansados, o que já é bastante. Outras vezes o que buscamos nos livros é justamente a tentativa de compreender o enrosco em que viemos parar, como chegamos aqui, como podemos sair dele. Cada pessoa pode dizer quais são seus limites e que tipo de leitura será a melhor companhia para cada momento. Mas como escape ou como confronto, a verdade é esta: toda literatura é política.

Nesse ano emblemático, foi inevitável revisitar e atualizar temas dolorosos, como nazismo e fascismo, mediante a ameaça da extrema direita — expressão que a imprensa internacional não hesitou em usar ao se referir ao atual governo (a partir de janeiro ex-governo, para a nossa alegria) —, que se estendia sobre o país. Então todas as discussões sobre livros acabaram sendo mais politizadas do que a média. Mais dolorosamente politizadas. Assim como aconteceu com cada almoço de família, com cada conversa entre amigos, com cada passeio pelo bairro, com cada sessão de análise ou terapia.

Agora existe esperança de que possamos viver uma outra realidade. Sabemos que o caminho será longo, que teremos muito trabalho, e que pacificar um país cindido é uma tarefa hercúlea. Não acredito em salvadores da pátria, mas estou muito grata por ter um presidente eleito com uma visão de mundo mais humana, complexa e plural. Que alento poder acreditar que estaremos num mundo em que a nossa própria existência, e a existência dos nossos conterrâneos, não estará constantemente ameaçada, sob a legitimidade de um governo que, ao contrário, justamente deveria nos proteger. Proteger o bem comum.

Como lembrança, como desabafo e também como agradecimento, encerro a minha última coluna desse ano tão amargo, que felizmente termina com bons ventos, reproduzindo aqui a íntegra do poema de Wislawa Szymborska (tradução de Regina Przybycien). Que 2023 seja um ano mais gentil para todas as pessoas do nosso país, mesmo para as que ainda não conseguem acreditar nisso.

Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

Rascunho