Por toda parte

Dois poemas e um pedido para que, em outubro, possamos começar a reconstruir o Brasil que merecemos ser
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/10/2022

Há alguns anos, li um trecho do poema What they did yesterday afternoon, de uma autora chamada Warsan Shire, até então desconhecida para mim. Eu, longe de ser a melhor leitora de poesia, fiquei comovida e compartilhei os versos com uma amiga escritora que, ao contrário, está sempre às voltas com poemas, entusiasmada, e ainda me lembro da nossa conversa, de como nós duas ficamos encantadas com a simplicidade e com a capacidade de síntese daquela combinação de palavras. Quando enfrentamos a pandemia, aqueles versos voltaram a reverberar em mim. Escrito originalmente em inglês, as duas últimas estrofes são assim:

later that night
i held an atlas in my lap
ran my fingers across the whole word
and whispered
where does it hurt?

it answered
everywhere
everywhere
everywhere.

Na tradução de Ricardo Domeneck para o português:

mais tarde naquela noite
eu pus um atlas no colo
passei os dedos ao longo do mundo
e perguntei
onde dói?

ele respondeu
por toda parte
por toda parte
por toda parte.

Mais tarde soube que Warsan Shire nasceu em Nairóbi, no Quênia, em 1988. Filha de pais somalis, foi morar na Inglaterra ainda na primeira infância e atualmente vive nos Estados Unidos. Soube também que ela venceu o primeiro Brunel International African Poetry Prize. Autora de duas plaquetes de poemas, Teaching my mother how to give birth (2011) e Her blue body (2015), ficou conhecida internacionalmente quando participou do álbum Lemonade (2016), de Beyoncé, e depois de seu musical Black is king (2020).

Agora em 2022, a Companhia das Letras publica o seu livro de estreia, Bendita seja a filha criada por uma voz em sua cabeça, em edição bilíngue com tradução de Laura Assis, e outro de seus poemas volta a me comover logo que começo a leitura. Casa (Home) tem duas frases que me pegaram em cheio:

No one leaves home unless home is the mouth of a shark.
Ninguém deixa a própria casa a menos que a casa seja a boca de um tubarão.

(…)

No one put their children in a boat, unless the water is safer than the land.
Ninguém põe os filhos num barco a menos que a água seja mais segura que a terra.

Ainda que os poemas falem de questões específicas, como toda boa literatura, também as transcendem e podem nos sensibilizar quanto a outros temas que, de certo modo, estão relacionados. Penso sobretudo nas guerras, nas próximas e nas distantes, nas deflagradas e nas veladas, e penso na parte que dói no mundo da qual faço parte, o nosso país. Penso na Amazônia sendo explorada numa ganância desmedida que desrespeita a floresta e seus povos, todos os seres viventes e todos os seres que precisam dela para viver — ou seja, todos nós. Penso nas tragédias anunciadas de Brumadinho e Mariana, em Minas Gerais, e na de Altamira, no Pará. Penso na ambição inescrupulosa a que só temos assistido escalonar, e esses infelizmente são apenas alguns exemplos de como tomamos decisões ruins ao longo da história da humanidade, em especial a humanidade ocidentalizada que se embriagou em sua crença de auto-importância e centralidade. Já passou da hora de buscarmos a reparação possível.

Se é verdade que desde a invasão do Brasil pelos colonizadores, temos uma violação dos povos originários, de seu modo de vida e de seus direitos, bem como das pessoas escravizadas trazidas do continente africano, também é fato que nos últimos quatro anos, sob o governo facilitador de Bolsonaro, o garimpo ilegal, a devastação, o armamento e a violência de forma generalizada atingiram níveis revoltantes, principalmente contra grupos minoritários. O Pantanal em chamas, os mais de 600 mil mortos numa pandemia — quantas dessas mortes poderiam ter sido evitadas sob uma gestão mais humana? Essa pergunta que não pode nos abandonar. O pretexto de que tudo isso é feito em benefício de uma economia que, na verdade, se esfarela. Vivo na cidade de São Paulo e a miséria cresce a olhos nus. Basta uma caminhada pelo quarteirão Temos as estatísticas que respaldam as impressões, ainda que as fake news insistam em negá-las. O presidente diz que nunca viu alguém pedindo dinheiro ou comida na saída de uma padaria ou de um supermercado. Eu fico pensando quando é, nos últimos tempos, que eu não os vi.

Quando essa coluna sair, em outubro, com sorte estaremos vivendo um momento de esperança. Com as eleições, teremos uma oportunidade rara de transformação. Além de escolher com muita responsabilidade as pessoas que vão presidir o nosso país e governar os nossos estados, também temos o compromisso de eleger um Legislativo que de fato represente os interesses do povo, e não que esteja contra nós, a favor de um pequeno grupo de empresários muito ricos, sobretudo na agropecuária. Quando você ler essa coluna, provavelmente o dia 2 de outubro já terá passado e talvez estejamos em clima de celebração. Mas talvez ainda tenhamos um segundo turno para enfrentar e então, deixo junto com esses poemas, um pedido: vamos votar contra o atual estado das coisas, vamos tentar fazer melhor dessa vez. O Brasil errou em 2018, seduzido por um discurso falacioso de combate à corrupção, que infelizmente nunca foi sincero. Em nome disso, entregamos o país a um homem autoritário, insensível e completamente despreparado. Mas nós merecemos nos livrar de Bolsonaro e de tudo que ele representa. Que outubro seja o mês em que possamos começar a nos alegrar por um 2023 repleto de desafios, mas com expectativa de que um novo ciclo possa vir, que um novo começo seja possível de ser construído depois do fim.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

Rascunho