Luís Quintais

O poeta que acredita que a pólis não tolera mais a poesia
Luís Quintais, autor de “Duelo”
01/09/2007

Os grandes poemas, mesmo quando tratam apenas dos fatos do cotidiano, revelam que os fatos da poesia não são os mesmos da experiência cotidiana. Também revelam, por meio de símbolos, fórmulas, encantamentos, profecias e orações, que agora, com a falência das religiões instituídas, a integração do indivíduo com a totalidade do mundo só pode acontecer com o auxílio da linguagem poética. Dupla jornada de trabalho: os poemas agora têm de tratar das antigas questões da poesia e, de quebra, discorrer sobre a origem de tudo, inclusive do bem e do mal, sobre o fundamento e o sentido das ações humanas, sobre a possibilidade ou não de vida após a morte. É nisso que eu acredito.

Luís Quintais discorda. Perguntei a ele: Neste momento de massificação e de banalização quase absolutas, que impulso irresistível levou você à alta literatura? É possível falar em vocação, no sentido religioso do termo?

Quintais discordou elegantemente: Não sei a que corresponde a expressão alta literatura, porém gostaria de reafirmar certa idéia de vocação. Não no sentido religioso do termo (ou talvez na sua fronteira). Vocação é assumir que, naquele que diz poeticamente o mundo, a linguagem (no que ela tem de incontrolável e indomesticável) conquistará sempre um padrão que é freqüentemente o resultado do enlace (essa pura singularidade) da palavra e da experiência. Uma possibilidade de ordem. Uma idéia de ordem, como pretendia Wallace Stevens. Mas descrever a poesia ou a vocação que a conduz e a emoldura como do domínio do religioso é, em tempos de secularização inexorável, uma pretensão excessiva. Talvez ela figure, no entanto, a única possibilidade hoje de uma metafísica secular (Stevens, outra vez): certamente uma extravagância.

Eu: Na tua opinião, a poesia ainda está conseguindo injetar vida e pujança na burocrática rotina metropolitana?

Ele: Nunca está. Ela deixou de estar na rua. A pólis já nem sequer a tolera, e é por isso que a incensa. Porque o periférico é também uma hipótese de mercado. A função social da poesia é cada vez mais (um dia será apenas isso, já é?) uma questão de distinção, e nada mais. Lamentável espetáculo num mundo em que tudo se espetaculariza (Guy Debord), e onde a poesia no seu pior não foge à regra.

Eu: Em quais momentos do teu dia-a-dia você percebe certas manifestações do sagrado?

Ele: O sagrado é difícil, talvez improvável. O melhor é dizer que as singularidades (outros dirão os milagres) ocorrem em baldios (para usar o título magnífico dum poeta e padre português, o José Tolentino Mendonça) do dia-a-dia. Hipótese do sagrado e hipótese de mercado, mas o dinheiro é também uma forma de poesia (Stevens, sempre ele). É porém raro visitarmos os baldios do dia-a-dia, lamentavelmente (ou pelo menos visitá-los em vocação ou inspiração — be strong, ó sacerdote do invisível!).

Luís Quintais nasceu em Angola em 1968. É antropólogo social de profissão e atualmente leciona no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Eu o conheci durante um seminário sobre as convergências e as divergências do pensamento de Lévi-Strauss e Gilberto Freyre, nessa mesma universidade.

Livros do poeta
Duelo (2004), Angst (2002), Lamento (1999), publicados pela Cotovia; A imprecisa melancolia (1995), publicado pela Teorema, entre outros.

Poemas de Luís Quintais

Postal ilustrado

Uma figura de mulher encaminha-se para a floresta.
Vai devagar. Desce a longa avenida de ventos que
rudemente lhe estilhaçam os ouvidos.

Quis adivinhar o seu rosto. Descrever as cores
do vestido que lhe estreitava o corpo, o movimento
dos braços para a frente, o ruído dos passos lentos

sobre as amarelecidas folhas. Mas ela é cada vez mais
um ponto que se afasta. Uma vontade perdida
para o dobrar das árvores à sua passagem.

Quando a mulher entrar na floresta
tudo se suspenderá. A solidão da paisagem
será a minha solidão.

Os meus olhos serão os olhos da paisagem.

No gesto alegre da distração

Como se o som de uma asa
quebrasse a razão
e a mão fechada se soltasse no ar,
dou abrigo à alegria distraída,
nítida ficção de não haver
realidade e imaginação.

De não haver arco-íris
nem idioma que o diga
em segundas núpcias de fogo e cinza,
de não haver lua
nem conceito que a sujeite à membrana de luz
do firmamento,
de não haver água
na indefinida exaustão das fontes
nem cântaro de música onde ela caia.

E cada imagem
é agarrada pela mão no gesto
alegre da distração:
o arco-íris e a lua,
a melodiosa água
no momento da negação.

A imprecisa melancolia

Nada o distrairia
nessa procura, disse.
Este o recado
da contingência:

era verão e fazia
muito calor.
Saía cedo, cortando
a passos lentos

a sombra das 9h30.
Caminhar até a vertiginosa
queda dos poentes.
Assinalar uma cinza,

a imprecisa melancolia.

Visões do mundo

Rua do Loreto. Todas as visões do mundo são parciais.
Como uma invenção de Vermeer
as traseiras de um edifício antigo
podem ser os limites da minha moldura.

Nada há de exaustivo
no olhar humano. A chaminé de tijolo tinge o céu
de um vermelho débil
que ele nunca teve.

Um universo de vozes,
infectos cheiros de cozinhas adjacentes, ruídos
que quebram o alheamento que sobre as fachadas
se perpetua.

Embaixo, uma varanda onde nunca está ninguém.
Nada sei da ausência que a varanda desvenda.
Do lado esquerdo, o parapeito alto confere-me a certeza
de que os meus domínios foram encontrados.

Neste perímetro de luz
procuro a consistência dos sentidos.
O território com que se abastece uma paixão descritiva,
o lastro da imaginação.

Tábuas

Presencio o fulgor das janelas.
Viro-me de encontro aos vidros do longo corredor
que separam o sol da tarde

dos recantos obscurecidos da primeira sala,
e vejo um recorte nítido,
um tremeluzir de nuvens no horizonte do vidro:

os prédios da frente rigorosamente transpostos
para uma linguagem primitiva
a dois, três traços, como o bisão de Altamira.

Imagens de terraços fronteiriços
e nuvens sobre terraços.
com elas se fazem as tábuas com que calculamos

as dimensões do dia. A pertença a certo ritmo,
a certa frase que da vida inteira
encerra o há muito perseguido.

Uma visão lírica

Entre os rios e até o mar,
entre a profusão das colinas
e a terna presença da noite,

Jordi me explica a cidade.
“Uma visão lírica”, diz ele.
E eu, um incrédulo

que acredita em abstratas
paisagens, em sujeições
de luz e cinza, fixo na retina a simetria

e a seguir o caos: a explosão que persigo,
o silencioso plano de fogo
que sob o miradouro se estende.

 

Valério Oliveira

É escritor e poeta. Autor, entre outros, de Todos os presidentes.

Rascunho