José Miguel Silva

O autor que acredita que o humor pode ser uma chave de acesso à poesia
José Miguel Silva, autor de “Movimentos no escuro”
01/08/2007

José Miguel Silva tem habituado mal os seus leitores. José Miguel Silva tem dado a eles doses cavalares da mais tensa secura. Doses maciças de devastação e sofrimento. Contra os diversos lamaçais instituídos, contra a tão simplória maldade miúda do cotidiano, contra os golpes devastadores do amor, contra a mais verdadeira e a mais falsa promessa, a da vida. “A sua poesia é tudo menos um melífluo convite à evasão” (Teolinda Gersão).

O poeta nasceu em maio de 1969, em Vila Nova de Gaia, no distrito do Porto. Atualmente vive em Lisboa. Mas viaja muito. Nos seis meses em que eu morei no Porto nos encontramos várias vezes. Geralmente no Café do Cais, estabelecimento tocado por um capixaba espevitado, Zé Soares, que sonha um dia mudar para o Rio. José Miguel Silva bebe cerveja. Eu prefiro vinho. Eu fumo cachimbo. Ele, cigarro. Da literatura brasileira ele aprecia os (ainda) vivos. Rubem Fonseca. Gullar. Sebastião Nunes. Conversamos sobre futebol, cinema, MPB e poesia.

Da entrevista que fiz com ele e valter hugo mãe (assim mesmo, com inicias minúsculas) para a revista Alcatéia, em 2005, destacam-se os cinco comentários melancólicos e azedos que reproduzo agora. Comentários sorumbáticos e esfumaçados (o cigarro jamais se ausenta), porém feitos com voz firme e musical. Feitos com vigor. Com entusiasmo. Com a certeza de que mais vale o poema do que a vida.

“O que me levou à literatura começou por ser a emulação dos escritores que lia e admirava. No meio do caos da realidade e das emoções, a literatura parecia surgir como uma promessa de sentido, de sentido estético e moral. Uma espécie de baluarte contra a estupidez do mundo. Hoje em dia sou muito menos otimista quanto ao poder salvador (para usar um termo de origem religiosa) da literatura.”

“Atualmente a literatura não tem nenhuma influência na vida pública ou política, pelo menos em Portugal. Mas no nível pessoal, individual, claro que a literatura pode ser, se não libertadora, pelo menos estimulante do ponto de vista mental. A poesia é a anti-rotina por excelência, é a criação da surpresa, tal como a vida deveria ser.”

“Já não faz muito sentido, creio, a disjunção poesia e prosa. Num tempo em que a poesia tende a saturar-se (e a anular-se) em vistosos efeitos sonoros, o que me interessa, sobretudo neste momento, é a possibilidade de dizer coisas, de transmitir frases com sentido, de fazer perguntas que se entendam. Fogos de artifício verbais e outros floreados são bons para quem não tem mais nada em que pensar.”

“O humor é uma linguagem universal. Se eu tenho a vaga aspiração de poder ser entendido pelas pessoas comuns (que, contudo, não lêem poesia), penso que o humor poderia ser uma chave de acesso. Uma das coisas mais desagradáveis na poesia e na vida portuguesa é a falta de sentido de humor (ao contrário do que ocorre na vida brasileira, por exemplo).”

“Os escritores portugueses são quase sempre muito sisudos e solenes, enchem a boca de palavras gordas (ou tão evanescentes como asas de libélula) e com isso só conseguem provocar um sono mortal. O humor é importante porque, se não encaramos a vida como uma comédia (ainda que de mau gosto), só nos resta encará-la como uma tragédia (que também é, é claro).”

Livros do autor
Movimentos no escuro (2005), publicado pela Relógio D’Água; 24 de março (2004), publicado pelo autor; Vista para um pátio seguido de Desordem (2003), publicado pela Relógio D’Água; Ulisses já não mora aqui (2002), publicado pela &etc.; O sino de areia (1999), publicado pela Gilgamesh, entre outros.

Poemas de José Miguel Silva

Dois
Aos sete anos temos sorte, conhecemos a morte
no enterro do vizinho. Cresce o sentido
das responsabilidades. Assim se prepara
a primeira comunhão.

Temos agora que cuidar não apenas
dos cadernos e dos lápis mas também
da alma, essa remissa ostra
onde se aloja uma pequena culpa.

Torna-se mais longo o caminho para casa
(mas também, confessemos, mais estimulante).
Já não corremos tão depressa com a pesada pasta:
um tropeço qualquer, e lá vem a consciência.

Seis
As lágrimas trazem um cão para dentro de casa.
Numa casa compassiva dá-se valor ao choro,
aceita-se o repto de mais uma boca
para morder. Assim a criança já não vai sozinha
à mercearia. Se quiser bater na professora,
bate no cão, o cão foge
para debaixo de um táxi, a criança
deixa crescer as unhas, arranha
com paciente fúria a magreza dos seus braços e chora,
chora a sua infância morta.

Nove
Num bairro semifabril, não compensa o estatuto
de classe média baixa. Os primeiros patins da rua
vão te fazer cair. Os contrários fazem círculos
em torno dessas posses: você tem que pedir desculpa
pelo jogo de monopólio, deixar que te roubem
as notas mais altas, as pequenas propriedades
de plástico sujo. Libertado das tuas diferenças,
só com má-vontade te passam a bola. E aos poucos
tudo volta à mesma forja de revezes, diatribes, mau olhado.
Num bairro de cegos, depressa aprendemos a odiar a luz.

Exame de estética

My rock’n’roll friend.
The Go-Betweens

Eu estava na Lavandeira à espera do César
que me prometera dez gramas para as 6h30
quando um desgraçado me trouxe a notícia
de que o Artur fora encontrado em casa
com a morte a correr em suas veias.
Oh, terríveis seis horas da tarde, eu tinha
na manhã seguinte um exame de estética
e a questão era responder para que serve
a arte, se não impede a mudança,
se não faz que você esteja aqui colado na gente
ouvindo o último dos Go-Betweens.
Não serve para muito, serve apenas
para escudar uma sombra, para escorar
as lágrimas, para que a morte não seja
a penúltima a rir.

Má sorte que ela fosse mercenária

It’s a miracle you’re not cynical.
Felt

Não era só a bela do bairro, era a lusa Marilyn
dos arrabaldes portuenses. Alta, toda loira,
só faltava miar. De longe e de perto a segui
ao longo dos anos mais tolos. Uma tarde,
no acaso de uma rua: meu amor perdido,
você ainda mora em Vilar do Paraíso?
Quando eu telefonei dias depois
ela me perguntou quanto é que eu ganhava.
Ao saber que era tudo lágrimas e livros,
ouvi — ai sim? — como arrefecia o paraíso
do outro lado da linha. Os meus vinte e cinco anos
aprenderam aí uma lição qualquer.
Mas já não me lembro muito bem
que aplicação ela teve, na gorada seqüência
desses meses. A que só volto agora
porque já posso rir à vontade.

Ridículo

Oh here we go, round and round again.
The Virgin Prunes

E assim a minha alma
começou a perder aulas,
a se fechar em canivetes,
a deixar crescer a sombra.
Já sabia que na vida
só depois do exame
é que ensinam a lição.

Fui servido ao caprichoso
ziguezague do acaso,
que me trouxe quase inteiro a
este pálido caderno,
onde toda a matemática
ri do meu intento
de somar ao não o nada.

Valério Oliveira

É escritor e poeta. Autor, entre outros, de Todos os presidentes.

Rascunho