Nossas heranças, nossos desterros

A diferença entre o escritor tradicional e o rebelde; e os desafios do autor contemporâneo
01/08/2009

“É tarde demais para desfolhar um livro e pendurar as suas páginas numa árvore de arame”, me disse um amigo intelectual, “tornar o texto uma explosão de imagens livres e fragmentadas, desconectadas de um passado e de um futuro, como fizeram os surrealistas”. A bela imagem logo povoou a minha mente. Folhas e palavras fincadas em finas estruturas, ao sabor do sol, ventos e tempestades. “Também é tarde demais para prender personagens e enredos em descrições e explicações excessivamente racionalizadas e estabelecidas”, ele continuou, “como fazia a tradição realista”. O meu amigo intelectual é assim, adora lançar idéias e questões no ar, para que eu, a sua amiga escritora, as pegue antes que a gravidade as derrube estateladas no chão. “Por que tarde demais?”, fiz a pergunta que ele esperava, “o que pode ser tarde ou cedo demais na escrita, na literatura?”, provoquei. O meu amigo intelectual fez uma pausa profunda antes de responder. “Porque hoje não há mais lugar para manifestos”, ele disse, “já que nada mais há para destruir”, e após outra pausa, completou, “apenas para performances, porque ainda há muito que fazer”.

E explicou que ao dizer performance, não queria dizer encenação, mas experiência. Como diz o dicionário: realização, feito, acontecimento. Ao ouvir o meu amigo intelectual, lembrei de um livro do escritor argentino Julio Cortázar, chamado a Teoria do túnel. Neste ensaio de 1947, Cortázar considera dois tipos de escritores: o tradicional, que segue um perfil de literato para quem a questão estética é voltada para os parâmetros realista e a realização estrutural da obra; e o escritor rebelde, representado pelos surrealistas, que visavam a formulação estética através da sensibilidade pessoal do artista. Para Cortázar, a diferença entre o escritor tradicional e o rebelde era total: para o último, o artista não lida mais com a obra de arte como se essa tivesse que espelhar a realidade, seguindo convenções literárias específicas. A obra torna-se massa a ser moldada pelo espírito criador do artista, pela sua maneira particular de ver o mundo.

“O escritor rebelde de Cortázar tinha o que destruir”, pensou meu amigo intelectual, “uma literatura engessada, pé-no-chão, fabricada mais pelo discurso do que pela linguagem, mais pela informação do que pelo jogo literário”. Do mesmo modo que o escritor rebelde buscava a sua visão pessoal da literatura, o escritor tradicional se apoderava das noções já estruturadas de gênero, narrativa, enredo, espaço/tempo, foco narrativo, personagens, sem considerar a possibilidade de questioná-los, negá-los ou recriá-los.

Como eu, o meu amigo intelectual tem grande admiração por Cortázar. Para nós dois, é apaixonante, na leitura de Teoria do túnel, acompanhar as suas reflexões e angústias. O escritor argentino sempre foi generoso em expor as suas dúvidas, seus medos, anseios e questionamentos criativos. Nunca esteve preocupado em acertar ou errar, mas sim em estar de acordo com a sua visão literária. “Vamos colocar ao lado dos dois escritores de Cortázar um outro tipo”, sugeri, “o escritor contemporâneo”. “Ótimo”, vi os olhos do meu amigo intelectual brilharem atrás dos óculos, “esse escritor que nada mais tem a manifestar, mas muito a fazer”. Para o meu amigo intelectual, o desafio do escritor contemporâneo é outro, já que ele possui em sua memória histórica tanto a afirmação quanto a negação da tradição. Na estante de sua casa, romances do século 19 dividem espaço com livros da vanguarda européia, modernismo brasileiro e outros modernos. “O escritor do início do século 21, diante de tantas informações e referências, corre o risco de se perder em um labirinto de possibilidades expressivas”, proferiu o meu amigo intelectual, “limitando-se a reproduzi-las, sejam tradicionais ou vanguardistas, acrescentando pouco da sua originalidade pessoal”. “Então, de certa forma, voltamos ao escritor rebelde”, eu disse, “porque permanece o desafio em trabalhar o texto a partir de uma visão própria de mundo”. O meu amigo intelectual pensou um pouco antes de concordar. “É verdade. Mas sem a intenção de desconstruir parâmetros, como os vanguardistas”. “A intenção agora é outra”, acrescentei, “é encontrar a própria voz criativa dentro de um turbilhão de vozes. Muito já foi feito, desfeito, dito e redito, a única possibilidade realmente criativa é então aquele que surge de anseios e visões muito pessoais”.

“Exatamente!”, meu amigo intelectual começou a gesticular, exaltado, não sei se com o que eu havia dito ou com o que ele estava prestes a dizer. “É nesse sentido que digo que ainda há muito a ser feito. O que é esperançoso, e, de certa forma, renovador. O desejo maior do escritor rebelde nunca foi destruir a narrativa realista apenas por destruí-la, mas porque ela paralisou dentro de sua convenção o espírito criativo e pessoal do artista. Esse legado permanece, basta escutá-lo. A sua mensagem fundamental é a liberação do imaginário, a expressão de uma sensibilidade particular, e não a destruição. Hoje não é necessário mais distorcer um texto, virá-lo de cabeça para baixo, abandonar completamente personagens e enredos, negar para sempre as referências da tradição”. Ouvindo meu amigo intelectual, pensei nos escritores tradicionais citados por Cortázar: Flaubert, Zola, Tolstoi, Dostoievski, Proust, entre outros. Todos grandes construtores de personagens e enredos, também reconhecidos e louvados pelo escritor argentino. “O reconhecimento da tradição é inevitável”, considerei, “há também um grande legado aí”. “Sim”, meu amigo intelectual concordou, “e por que não olhar para os dois, conhecer os dois, escutá-los?”. E continuou, empolgado, “A rebeldia veio para resgatar na literatura a experiência sensível, íntima, pessoal, de quem escreve com o que escreve. Há ou houve talvez um grande engano, no escritor contemporâneo, em querer se aproximar do escritor rebelde destruindo simples e completamente as estruturas tradicionais. É como destruir uma casa sem libertar a alma aprisionada em suas paredes”.

Olhei-o, atônita. O meu amigo intelectual havia esquecido algo muito importante. Ele não estava conversando com seus outros amigos intelectuais, mas com a sua amiga escritora. Não se diz essas coisas, assim, para a gente. Em seguida, olhei lentamente para os meus dedos. Era inevitável: eu tinha ruínas e almas aprisionadas nas mãos. O meu amigo intelectual percebeu enfim a minha angústia, mas, mesmo percebendo, não se deixou abater. Foi impassível: “É como eu disse: há muito a ser feito”.

Claudia Lage

Claudia Lage é escritora. Autora do romance Mundos de Eufrásia, entre outros.

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