Livros não existem, dizia o escritor paraguaio Augusto Roa Bastos. Um livro só existe quando alguém o lê. Mais complicado: para cada leitor, um mesmo livro é, sempre, um livro diferente. Um livro é muitos livros mas, se o deixamos fechado em uma estante, não é livro algum.
As meditações de Roa Bastos me voltam quando começo a reler Moby Dick, o mais importante romance do nova-iorquino Herman Melville (Cosac Naify, tradução de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza). Li Moby Dick pela primeira vez aos 17 anos de idade, em uma precária edição do Clube do Livro do Rio de Janeiro. Nasci em 1951. Já se passou, portanto, meio século.
Li perturbado, pois tinha a impressão de que Melville não só acabara de escrevê-lo, como o escrevera para mim. Potência dos grandes livros: transformam seus leitores em suas vítimas. E, no entanto, quando o li pela primeira vez, Moby Dick já era um romance centenário. O romance de Melville é de 1851.
Avanço com delicadeza na leitura de Moby Dick, minha segunda leitura. Perdi para sempre a edição antiga, que ficou retida, como um sonho, em minha adolescência. A impecável edição da Cosac Naify, em capa dura, confirma a ideia de Roa Bastos, segundo a qual quando relemos um livro lemos outro livro. Um livro não existe sem seu leitor, e um mesmo homem nunca é o mesmo leitor.
Algo se repete. O que se repete? O impacto que o romance me provoca. Meio século depois, volto a ter 17 anos. É sempre perigoso reler narrativas que nos apunhalaram o coração na juventude. Homens maduros, somos outros homens, e há sempre o forte risco da decepção. Mas não com Moby Dick. Avanço com cuidado, cheio de receios e de expectativas, conservando (ou simulando, na esperança de enganar a mim mesmo) o sentimento de que o leio pela primeira vez. Página a página, o livro me golpeia e espreme meu coração. Isso é ler.
Fui um jovem estranho, introspectivo, dado a longas meditações circulares, que me enredavam, mas também me tornaram dono de mim. Aos 17 anos, não li Moby Dick com a simplicidade a que o reduzem os verbetes escolares: como a luta de um homem, o capitão Ahab, para capturar uma baleia. O livro é isso, mas é muito mais que isso. A leitura madura que agora faço alarga, por certo, minha visão das coisas — mas não me desvia do caminho que tomei na primeira vez.
O capitão Ahab é um homem cruel, ainda mais para leitores que, como eu, amam os animais. Mas nunca somos uma coisa só, e nem ele, Ahab, é. Há no capitão uma angústia que, rapazola, já me devastava e que me levou, cheio de vergonha, a com ele me identificar. Uma angústia que provém da solidão. Quando pensa no mar em que navega com seu baleeiro, o capitão Ahab tem consciência, desde logo, que navega em uma armadilha. Que seu único amigo, o oceano, é seu pior inimigo. Pode haver sentimento mais perturbador?
Pouco depois, aprendi que Melville inspirou-se nas muitas viagens que fez em baleeiros através do Pacífico. Em outras palavras: retirou o romance — e Ahab, e também sua baleia — de dentro de si mesmo. Essa descoberta me fez desistir de cursar a faculdade de Letras. Se Melville escavou seu livro não de outros livros, mas de sua própria vida, seria melhor que eu também me dedicasse à vida, e por isso optei pelo jornalismo. Uma boa razão, mas, devo admitir, uma escolha, ou conclusão, infeliz.
A leitura de Moby Dick me ensinou que as atmosferas mais sedutoras escondem, muitas vezes, como Melville escreve, “as garras mais cruéis”. “O tigre de Bengala atocaia-se nos bosques perfumados de verdor eterno. Os mais esplendorosos céus abrigam os trovões mais fatais.” A vida aventureira de Ahab, deslizando sobre mares azuis e no rasto delicado das estrelas, sua paixão assassina pelas imensas baleias brancas, tudo o que tem de mais vital o conduz não à felicidade, mas à loucura. A paixão se torna uma doença. A obstinação, uma obsessão. A vontade de lutar se transforma na vontade de destruir. Há um grande perigo guardado dentro dos homens e é dele, e não de baleias, ou de marinheiros, ou mesmo de tempestades, que trata Moby Dick. Nossos tristes dias confirmam isso.
E esse Mal secreto, que todos de alguma maneira carregamos, pode tomar as formas mais imprevistas. Lembro-me agora de Bartleby, o pacífico copista de Bartleby, o escriturário, pequena novela que muitos consideram a obra-prima de Melville. Pobre homem, um dia fulminado não por um arpão, mas por uma frase: “Acho melhor não”. Desiste de trabalhar, desiste de agir, e quando lhe cobram isso, limita-se a repetir: “Acho melhor não”. O Mal pode se esconder em uma frase simples, inofensiva, quase desprezível. Ahab o vê em uma baleia, às vezes o vê no mar, mas o Mal está dentro dele mesmo.
Não, a leitura de Moby Dick não leva o leitor a lições moralistas, ou a soluções místicas. Nada disso. O Mal não é algo de que possamos fugir. Ao contrário, assim como o Bem, e toda a infinita variedade de matizes que os separam, ele faz parte do humano. O Mal nos submete, assim como o Bem, mas sempre podemos sobreviver. Para quê? A resposta aparece na epígrafe, tomada de Jó, que abre o epílogo do romance de Melville: “E só eu escapei para te contar”. Não podia ser de outra maneira: para os escritores, viver é narrar.
Moby Dick, a grande baleia, sobrevive e indiferente à fúria do capitão, continua a nadar no imenso oceano. É o capitão quem, como um bicho acuado, naufraga em sua busca. Ele ainda faz uma última pergunta: “Que coisa se quebra dentro de mim?”. Toda a agitação — como no espírito de um leitor que se debruça sobre um grande livro — é apenas interior. Depois da luta, descreve Melville, “o grande sudário do mar voltou a rolar como rolava há cinco mil anos”. O homem naufraga, a vida prossegue.
Talvez, por contraste, se possa entender aqui a opção de Bartleby pela imobilidade. Para que agir se, ao fim, tudo permanece igual? Mas é na ação, em que paixão e loucura se misturam, Bem e Mal se abraçam, que a vida prossegue. É na ação, intensa e tonta, que sangra nas pequenas coisas, que um grande livro se faz.
NOTA
Texto publicado, em sua forma original, na revista Wish Report.