Kerouac e Tchekhov muito confusos

O estado de confusão é inerente e essencial ao trabalho da escrita
Jack Kerouac: “Eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser a minha própria confusão”
01/12/2011

Faço anotações de rotina em minha agenda, onde misturo compromissos diários com idéias. É uma agenda comum, nem grande, nem pequena. Meus compromissos, lembranças, prazos a cumprir, minhas anotações diárias transbordam para fora das folhas. Derramam-se sobre minha mesa de trabalho, um pequeno monstro que me ameaça. Fim de ano: todos andamos mais cansados. Não posso reclamar dos compromissos que anoto, pois amo meu trabalho. Ainda assim.

Em meio à luta para acomodar horários e datas, e também para não deixar que as idéias soltas me escapem, chega-me um e-mail do poeta Fábio Santiago — um jovem arredio e discreto, que tem o mau hábito de duvidar de seus próprios versos. Oferece-me uma idéia de Jack Kerouac, em que ele se vê espelhado, mas na qual espelho minha própria condição. Diz: “Gosto de muitas coisas ao mesmo tempo e me confundo inteiro e fico todo enrolado correndo de um destino falido para outro até desistir. (…) Eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser a minha própria confusão”.

O primeiro impulso é negar as palavras de Kerouac e afirmar que elas nada dizem a meu respeito. Mentira: o estado de confusão é não só inerente, como essencial, ao trabalho da escrita. É de um emaranhado de idéias, que parecem não combinar entre si e tampouco levar a algum destino, que o escritor parte. Andei sumido nos últimos dias — uma sucessão de viagens de trabalho me sugou toda a concentração.

Parei muitas vezes para tomar notas em meu caderno de viagem e, assim, esboçar algumas palavras que eu pudesse lhes oferecer. As anotações continuam aqui, em meu caderno, mas ainda não pude concluí-las. Então, de repente, na mensagem rotineira de um amigo, surge uma idéia que me fisga. As palavras não vêm de onde esperamos. A escrita não se submete a projetos, não se domestica. É um bichinho teimoso, que só faz o que quer. Dizendo melhor: que faz de nós, seus supostos “donos”, o que bem entende.

Melhor fugir de domadores e adestradores. A literatura não se interessa pela disciplina e pelos bons modos. Lembro que li, recentemente, uma anotação de Tchekhov (um escritor de que nunca escapo) que dialoga com o que penso. Rondo minha biblioteca e a encontro. Está em Um bom par de sapatos e um caderno de anotações, seleção de pensamentos do escritor russo organizada por Piero Brunello, que leio na tradução de Homero de Andrade para a Martins Fontes. O livro, que é precioso, traz, porém, um subtítulo restritivo: Como fazer uma reportagem. Costumo usá-lo não só em oficinas de jornalismo cultural, mas em oficinas literárias. Na verdade, eu o leio como um precário, fragmentado, mas fértil “guia de vida”. Tenho-o sempre por perto.

Lá está, na página 40, a anotação de Tchekhov que eu buscava. Brunello, o organizador, a batizou de: Não planejar demais. Ele a resume assim: “Às vezes deixar nas mãos do acaso pode revelar-se útil, principalmente se o lugar é desconhecido”. A literatura é um “lugar desconhecido”: quando começa a escrever um poema, um romance, um conto, o escritor deve ter a coragem de reinventar a literatura — ou será um mero copista.

Volto a Kerouac (e a Fábio) e a seus lamentos a respeito do que chamam de “confusão”. Rememoro a frase inteira de Kerouac: “Eu não tinha nada a oferecer a ninguém, a não ser a minha própria confusão”. Seus livros desmentem sua tese. A confusão não é um obstáculo, ao contrário, a confusão é uma condição (primordial) para a escrita. Se você partir do conhecido (do não-confuso), será só um repetidor. Criar exige um alto grau de tolerância à confusão.
De onde Tchekhov tirava seus escritos? Em Não planejar demais (insisto: o título não é seu), ele descreve o dia em que, durante sua lendária viagem à ilha de Sacalina, no extremo oriente russo, cruzou com um desconhecido que lhe perguntou qual era seu destino. Só para lhe dar uma resposta que fosse, ao mesmo tempo, uma fuga da resposta — pois o próprio Tchekhov não sabia o que buscava em Sacalina —, o escritor lhe pergunta se não era possível “alugar um apartamento em algum lugar”. A indefinição do lugar atesta sua disposição para as surpresas.

Já com um apartamento alugado, Tchekhov sai para um passeio. Na rua, cruza com quatro detentos que transportam um morto sobre uma padiola. O grupo que os segue parece apressado, temeroso — o escritor apenas imagina — de não encontrar um sacerdote que encomendasse o falecido. Ao acaso, o escritor conversa com um dos caminhantes. Ele lhe explica que a morta se chama Liálikova, “mulher livre, cujo marido, um colono, viajara para Nikoláievski”. O homem com quem Tchekhov conversa é o inquilino da morta e agora não sabe o que fazer com os dois filhos pequenos que ela deixou.

Tchekhov, ele sim, sabe o que fazer: tomar notas. Para quê? Mais tarde, examinando seu caderno, talvez tenha pensado — como Kerouac — que ele não passava de um amontoado de idéias dispersas e confusas. Sabe, no entanto, que um escritor deve estar disponível para o acaso. E o acaso, na maior parte das vezes, parece sem significado, parece inútil; no entanto, é dele que vivemos. Pensou mais Tchekhov: é dele que escrevemos.

Volto a observar as anotações que transbordam de minha agenda. Entre compromissos objetivos — a data de entrega de um artigo, o horário de uma consulta ao dentista, um e-mail que não posso deixar de responder —, escorrem idéias soltas — e confusas! — que parecem só me atrapalhar. Aprendi com Tchekhov (e por isso o tenho como um de meus mestres), porém, que nada devo jogar fora.

Não pensem que meu escritório está sempre desarrumado, não consigo escrever se a papelada sobre a mesa não se submeter a certa ordem. A desordem de que necessito vem de outro lado. Vem de dentro. É, mais, uma desordem interior, que nem preciso procurar, mas devo simplesmente aceitar. Tenho certeza de que, apesar de seus lamentos, Jack Kerouac — um escritor hoje um tanto fora de moda — acolhia sua própria desordem, aceitava seu próprio caos, ou não teria escrito o que escreveu. As modas passam. Os escritos estão aí.

Ao chegar, enfim, à ilha de Sacalina, Tchekhov tentou impor certa ordem ao caos que nela encontrou. Acumulou gráficos, tabelas, estatísticas, que depois não lhe serviram para nada. A escrita veio de outro lugar. Surgiu “entre” essas tentativas de ordem, nos intervalos em que ele desistiu de ordenar e aceitou apenas observar. Admirar a própria confusão: eis um bom começo para quem pretende escrever.

NOTA
O texto Kerouac e Tchekhov muito confusos foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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