Hilda Hilst pede contato

Filme dirigido por Gabriela Greeb sobre a autora de “A obscena senhora D” é um espantoso e surpreendente documentário de ficção
Ilustração: João Paulo Porto
01/02/2021

Chega-me pelo correio, enfim, meu exemplar de Hilda Hilst pede contato, livro da Sesi-SP Editora que traz o roteiro completo e farto material iconográfico do filme homônimo, de Gabriela Greeb. Um espantoso e surpreendente documentário de ficção sobre a autora de A obscena senhora D — provavelmente o livro mais conhecido de Hilda, lançado em 1982 pela editora Massao Ohno.

O livro mistura cenas reais da vida na Casa do Sol, na periferia de Campinas, para onde ela se mudou em 1964 e viveu até falecer, em 2004, com imagens arrebatadoras, depoimentos emocionados de amigos, leitura de textos de Hilda. Ele traz ainda a voz atordoante da escritora, gravada nas fitas magnéticas com que ela, a partir de 1974, procurou fazer contato com os mortos.

“Eu queria continuar pedindo, hoje por ser uma noite especial, que fizessem o possível para contatar hoje, para vir perto do gravador, do transmissor do espaço, que houvesse um esforço da parte de vocês da outra dimensão”, a voz de Hilda se desenrola, já em tom insistente, que bordeja o desespero. A sonoridade de sua voz é, em si, assombrosa, e é sempre do assombro, da surpresa, do temor que trata todo o filme de Gabriela.

“Alô, alô povo cósmico, rede telefonia, Hilda procurando contato. Hilda procurando contato”, a voz insiste, incorporada com perfeição pela atriz Luciana Domschke. “Contato, contato”, ela insistirá durante todo o filme, nos arrastando para o interior de uma busca aflitiva, mas incontrolável. “Tem alguém aí”? — Hilda pergunta mais uma vez. Não espera pouco do Além. “Queria falar com Franz Kafka, Camus, Nikos, com esses amadíssimos, os mais amados”, nomeia, como se conversasse com uma telefonista de hotel.

Hilda Hilst segue, todo o tempo, as teorias e os métodos de Telefone para o além, livro que o sueco Friedrich Jurgenson publicou em 1964 e que ela estudou com abnegação. Chegava a dizer que a busca de contato com os mortos era mais importante, para ela, do que a própria literatura. Era mais verdadeira e real. Reforçavam suas teses as conversas que tinha com os físicos e amigos César Lattes e Mário Schenberg. Falavam da relatividade e do Tempo. A partir delas, Hilda embaralhava o passado, o presente e o futuro. Desse modo, sedimentava seu caminho imaginário, mas persistente, para além da morte.

Desde que se isolou na Casa do Sol, as teorias de Jurgenson a atormentavam. Decidiu abandonar a vida glamourosa que tinha em São Paulo depois da leitura da Carta a El Greco, último e mais enigmático livro do escritor grego Nikos Kazantzakis, nascido e enterrado na ilha de Creta. Outra de suas grandes influências. Sozinha em sua chácara, passou a buscar contato com Clarice Lispector, com a atriz Cacilda Becker e com o historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes — seus interlocutores imaginários mais comuns. “Contato, contato”, insistia sem nunca desistir, mas só recebia de volta o silêncio. Um silêncio pesado, fechado como uma porta bem trancada, impossível de ultrapassar.

O filme de Gabriela Greeb é belo e perturbador. São muitos os momentos sublimes. “Uma coisa estranha eu ouvi muito longe, uma música… parece o vento”, Hilda diz em certo momento de desânimo e agonia. Mas insiste com perguntas específicas a seus convidados do Além. “Eu gostaria de saber como Clarice Lispector está se sentindo aí. Clarice, é Hilda Hilst, como você está se sentindo?” Em certo momento, ainda mais específica, ela insiste: “Clarice, nenhum recado para o José Mora Fuentes”? Referia-se ao artista plástico espanhol José Luis Mora Fuentes, nascido em Valência e que viria a falecer em 2009. Um de seus mais próximos amigos. São dele as capas de alguns dos livros de Hilda, editados pela Massao Ohno, como Tu não te moves de ti, desconcertante ficção lançada em 1980.

Hilda Hilst foi uma mulher em quem as influências se alimentavam e se interpenetravam. Foi muito influenciada, também, pela leitura de A negação da morte, ensaio famoso — dizem que era o livro de cabeceira do presidente Clinton — que o psicólogo e filósofo Ernst Becker publicou no ano de 1973. Becker foi um estudioso da busca humana pela imortalidade. Não que nela acreditasse. Ao contrário, Becker via nessa obsessão pelo Além um fator determinante nas doenças psíquicas que, em muitos casos, surgiam apenas para encobri-la.

Em dado momento do filme de Gabriela, Hilda chama também por Victor Tausk, o jovem neurologista que estudou com Freud. Tausk — como tudo o que interessava a Hilda — foi um pensador polêmico. É dele a controversa teoria da “Máquina de Influenciar”. De acordo com suas explicações, uma máquina operada por pessoas distantes, talvez alienígenas, influencia os pacientes, produzindo alucinações. Máquina porque trabalha, todo o tempo, com sensações elétricas e magnéticas. Morto em 1919, aos 40 anos, Tausk é um pensador forte na formação de Hilda. “Contato, contato”, ela chama, nele pensando. Minuciosa, chega a dizer: “Você não quer falar comigo, Tausk? Meu nome é Hilda Hilst”. E depois, na tentativa de desfazer algum mal-entendido: “Alguém conhece o Victor Tausk? Foi discípulo de Freud”, mas o silêncio permanece.

Pelo filme circulam, contracenam, prestam depoimentos e fazem leituras grandes amigos de Hilda, como o escultor Dante Casarini — com quem ela chegou a ser casada —, a renomada crítica literária Eliane Robert Moraes e o escritor Leandro Carlos Esteves. É Esteves quem nos traz a mais precisa definição da voz de Hilda — timbre que, depois de assistir ao filme, continua a nos atordoar por um longo tempo. “Ela tem um tom de cinzel”, ele compara, “Um cinzel esculpindo”. Mais uma vez, a arte não poderia deixar de estar presente.

Aos poucos, diante do silêncio extenuante que recebe sempre em troca, Hilda começa a se irritar. Chega a dizer, em tom áspero, de reclamação: “Eu quero ajudar as pessoas do medo que as pessoas têm da morte…. Assim não vai dar, vocês não falam comigo”. Impotente, resta-lhe aceitar, quase furiosa, o silêncio. Ele o empurra de volta para seus próprios livros nos quais as palavras, de tão vibrantes e agudas, se parecem com espadas.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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