A paixão alimenta a literatura, ou enfraquece a literatura? Amar leva a escrever, ou a calar? Em sua polêmica biografia de Clarice Lispector, o jornalista e escritor americano Benjamin Moser sugere que, mesmo quando o amor é impossível, ele estimula a escrita. Mesmo fracassado, um amor ajuda a escrever.
É preciso, primeiro, distinguir o amor do casamento. Casada entre 1943 e 1959 com o diplomata Maury Gurgel Valente, Clarice nunca escondeu que se sentia sufocada pela vida conjugal. “Nada tenho feito, nem lido, nem nada. Sou inteiramente Clarice Gurgel Valente”, diz em carta de 1944. Se o casamento de Clarice e Maury “deu certo” (gerou dois filhos e perdurou por 16 anos), porém, mesmo “dando errado”, a paixão impossível pelo romancista mineiro Lúcio Cardoso parece ter sido mais importante para sua escrita.
Quando se conheceram, Clarice tinha 20 anos, e Lúcio — brilhante e sedutor —, 28. Ela logo se apaixonou, mas eles formavam um casal impossível. Lúcio era um homossexual assumido. Havia, ainda, lembra Benjamin Moser, um segundo impedimento: os dois eram “parecidos demais”.
Mesmo assim, especula o biógrafo, foi o amor não correspondido por Lúcio Cardoso que levou Clarice a cultivar a solidão — condição essencial para a escrita. Mais que isso: foi o fracasso no amor que a empurrou para a literatura. Através de Lúcio, ela passou a frequentar as rodas literárias do “grupo introspectivo” que se reunia no Bar Recreio, no centro do Rio. Chegou, assim, à poesia metafísica de Augusto Frederico Schmidt e encontrou sua ascendência “mística” em Cornélio Penna e Octávio de Faria.
Foi Lúcio Cardoso quem sugeriu, também, o título de seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, de 1943. Foi ele, ainda, quem lhe mostrou que as anotações dispersas, que ela tomava às tontas e que pareciam incoerentes, eram, na verdade, o seu método.
Nos anos 60, Clarice Lispector se aproximou de outro escritor: o cronista e poeta mineiro Paulo Mendes Campos. Desde 1959, estava separada de Maury. Em junho daquele ano, regressou com os dois filhos ao Brasil, apostando novamente na solidão. Em 1962, porém, envolveu-se com Paulo.
Diz Moser, com astúcia, que Paulo Mendes Campos foi uma “versão heterossexual” de Lúcio Cardoso. Ambos eram mineiros, católicos, talentosos e sedutores. Eram também perdulários, boêmios e alcoólatras. Como Lúcio, ele exerceu uma forte influência intelectual sobre Clarice. Mas foi outro amor impossível: Paulo já era casado com a inglesa Joan Abercombie.
Mesmo assim, afirma ainda o biógrafo americano, os dois viveram uma paixão secreta. Vínculos invisíveis os ligavam. O jornalista Ivan Lessa resumiu: “Em matéria de neurose, nasceram um para o outro”. Clarice tentava ser discreta, mas não continha a ansiedade. Joan tolerou por um tempo a “amizade”, mas chegou a seu limite, e intimou Paulo a partirem, com os filhos, para Londres. Mesmo apaixonado por Clarice, ele escolheu a família.
Avalia Moser que o fim do romance com Paulo Mendes Campos isolou Clarice do meio literário e, de um modo mais geral, do “mundo adulto”, com o qual ela teve sempre laços muito frágeis. Ela o amou até o fim de seus dias. Em 1974, lembra Moser, encenou sua mágoa no conto “Miss Algrave”, de A via crucis do corpo. A história de uma mulher que seduz seu chefe. Vingativa, Clarice relata: “Era casado com uma mulher pálida e insignificante, a Joan”.
É sempre ambígua e tensa a relação amorosa entre escritores. Influenciada pela filosofia de Jean-Paul Sartre, com quem viveu uma relação heterodoxa, mas apaixonada, Simone de Beauvoir acreditava que todo amor é impossível, mas, ainda assim, podemos fazer muito de seus destroços. “O movimento de fracasso do homem rumo ao ser é sua própria existência”, escreveu. Só porque via o amor como uma experiência insuficiente e desastrosa, Simone conseguiu amar Sartre. E talvez só por isso, também, tenha se tornado Simone de Beauvoir.
Às vezes, como mostram os poetas Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, a mistura de literatura e paixão resvala na loucura. Quando se aproximaram, Verlaine, um homem casado, tinha 26 anos e Rimbaud era um rapazote de 17. Correspondiam-se. Apaixonaram-se. Quando, enfim, se conheceram pessoalmente, os sonhos desabaram. Verlaine achou Rimbaud silencioso e estranho. Rimbaud decepcionou-se com a aparência solene e recatada de Verlaine.
Verlaine se embriagou com as ideias de Rimbaud, que combatia os parnasianos, a família e a pátria. Na busca do “desregramento dos sentidos”, abusaram do absinto e do haxixe. Em 1872, fugiram juntos para Londres. As brigas se agravaram. Verlaine se arrependia sempre. “Volte, volte, amigo. Juro que serei bom”, escreve em carta de 1873. Numa dessas desavenças, Verlaine fere Rimbaud com um tiro no punho. Passa dois anos na prisão. A paixão os destruiu, mas esgarçou os limites de sua poesia. Aventura extrema que, por fim, levou Rimbaud a desistir da própria poesia.
A mistura de amor e literatura toma uma forma quase perfeita na figura da escritora russa Lou Andreas Salomé. Brilhante e sensual, Lou “devorou” o espírito de três grandes homens: o poeta Rainer Maria Rilke, o filósofo Friedrich Nietzsche e o fundador da psicanálise, Sigmund Freud. Foram paixões distintas. Com Freud, um amor reprimido sob a capa da “admiração”. Nietzsche lhe propôs casamento, que ela recusou, restando-lhe aceitar uma relação a três, com o filósofo Paul Ree. Já com Rilke, ela viveu uma paixão intensa que esbarrou na fraqueza do poeta, um homem cada vez mais desamparado. Aos poucos, Lou preferiu ficar com o poeta e se afastar do homem. Pragmática, escreveu: “Se você quer uma vida, aprenda a roubá-la”.
Mesmo quando bordeja o desespero, porém, o amor sustenta a literatura. Casada em 1912 com o escritor Leopold Woolf, nem o amor salvou Virginia Woolf da autodestruição. Na base da paixão de Leopold por Virginia estava não só o fascínio por sua escrita, mas o desejo de salvá-la da loucura _ que enfim, no ano de 1941, levou-a a afogar-se, com os bolsos cheios de pedras, nas águas do rio Ouse. A admiração literária e o amor não garantiram a felicidade. Mas a fizeram escrever até o fim.