A montanha do medo
As imagens atordoantes da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro despertam, além de uma profunda dor, um sentimento muito antigo e resistente: o medo. Estar vivo, afinal, não traz garantias. A vida arrasta sempre uma sombra — no caso, as águas que, de bela paisagem, se transformaram no inferno. As cenas comoventes na TV me pegam — inquietante coincidência — em meio à leitura de Breves notas sobre o medo, de Gonçalo M. Tavares, livro breve e delicado que leio na edição portuguesa da Relógio D’Água.
Observo mais um pouco as imagens tomadas pelos cinegrafistas, os depoimentos desesperados, a experiência atroz da decepção. Quando não suporto mais — exatamente em uma cena em que: não, não vou dizer —, volto a me agarrar ao livro de Gonçalo. Fui um menino medroso. Acho que ainda hoje sou um homem medroso. Houve tempo em que me envergonharia de dizer isso. Hoje não: a verdade é que o medo é nosso segundo sangue.
São capítulos curtos, mas devastadores, que, como tudo em Gonçalo, guardam a estrutura de um poema. Detenho-me em um deles, muito breve, batizado Como viver? — pergunta, aliás, estampada nas faces de todos que, na montanha, choram sua desgraça e seus mortos. Como viver depois do que aconteceu? Viver, que parecia tão simples e natural, já não é mais. Sim: a vida não é para qualquer um. Viver é sustentar — imensa pedra — o desejo de viver.
Conta-nos Gonçalo a história de uma carroça que avança em uma estrada, puxada simultaneamente por dois animais. O primeiro é lento, arrasta-se. O segundo, ao contrário, é rápido, corre. A divergência de ritmos acaba por derrubar a carroça. Eis a origem da desgraça: um desencontro. Na boléia, guiada por um criado, viajava uma nobre dama. Mesmo depois do acidente, porém, a divergência de ritmos não pára. Escreve Gonçalo: “O criado, que agarrava o chicote, culpará do acidente o animal mais lento”. Mas o outro animal também será responsabilizado. Prossegue: “A nobre dama, lá atrás, na carruagem, não hesitará em culpar o mais rápido”.
Como viver, se uma de nossas pernas nos leva para um lado, e a outra na direção oposta? Como viver, se somos feitos de pura divergência? Gonçalo descreve, com exatidão, uma das mais extremas visões do medo. Fugir montanha abaixo, ou agarrar-se à primeira árvore? Insistir em salvar quem já parece perdido, ou salvar-se? Arriscar-se em meio à enxurrada em busca de uma rota de fuga, ou escalar como um bicho o teto da própria casa e, resignado, esperar?
Perguntas dolorosas como essas, por certo, atormentaram o espírito dos moradores da montanha. Em meio ao desastre exterior, um desastre interior. Perguntas, no fundo, sem resposta. É muito fácil respondê-las depois, mas e no terrível momento? Responsabilizar A ou B, atribuir o mal a essa ou àquela entidade, pensar: “Ah, eu devia ter feito!”. Essa é a origem da dor, e é também a origem do medo: nada sabemos a respeito do próximo segundo. Um passo errado, uma escolha infeliz, uma fraqueza momentânea, uma tempestade, e tudo se perde.
Lamento se esperavam, do livro de Gonçalo M. Tavares, algum consolo. Confesso que nunca esperei. Vejam vocês que a literatura não fornece solução para nada. Não dá lição de vida, não expõe grandes exemplos, não apresenta resultados, nem saídas. Nada, nada. Mas então, para que abandonar a televisão e ler Breves notas sobre o medo? Por que se apegar à literatura, se ela é inútil?
Acontece que ela nos defronta, de modo escandaloso, com o abismo que racha o peito do humano. Nas horas mais duras, diante das tragédias mais impensáveis, essa divisão — como uma ferida incurável — se expõe. É com ela que precisamos fazer alguma coisa. É a partir dela, que conseguimos viver, ou não. Não temos certeza de nada, e é isso.
Largo o livro de Gonçalo M. Tavares sobre uma poltrona e volto para frente da TV. Lá estão imagens que ninguém pode aceitar. Dores impossíveis de sentir, cenas que parecem ultrapassar o humano. Tudo aquilo está além de nossos limites e, no entanto, tudo aquilo existe. É aqui, eu acho, que a literatura entra: para, como uma delicada moldura, ressaltar o valor da vida. Leio Gonçalo e as imagens da tragédia se tornam ainda mais fortes. Inevitável não voltar à sentença de Clarice Lispector: “Quanto à literatura, prefiro um cachorro vivo”. Eu também.
As três origens da tragédia
A história do homem pode ser reduzida à história das relações entre as palavras e o pensamento, escreveu o poeta mexicano Octavio Paz. “Todo período de crise se inicia ou coincide com uma crítica da linguagem.” Nos momentos extremos, em que o mundo se desgoverna — como a catástrofe que abala a região serrana do Rio de Janeiro — a relação entre palavras e pensamentos entra em pane. Toda idéia parece falsa. Nessas horas, alerta ainda Paz, também o sentido de nossos atos se torna inseguro.
O que fazer? O que não fazer? Paz ilustra o único caminho possível com uma reposta que Confúcio, o sábio da China Antiga, dá a uma pergunta de Tzu-Lu. A pergunta é objetiva e pede uma resposta prática e imediata: “Se o Duque de Weu te chamasse para administrar seu país, qual seria a tua primeira medida?”. Para a surpresa de Tzu-Lu, a resposta de Confúcio não propõe atos concretos, ou estratégias políticas. Limita-se a dizer: “A reforma da linguagem”.
Formuladas nos anos 1950, as idéias de Octavio Paz me voltam, como rasgos de luz, em meio à tristeza da catástrofe na serra. Os sabichões de plantão reclamam disso e daquilo, protestam contra fulano ou beltrano, propõem uma ou outra saída espetacular. Bufam — falsos senhores das palavras — como se a tragédia fosse só um problema de inoperância. Certamente é também, mas o ultrapassa. “Há algo se desmanchando no nosso planeta”, me diz minha amiga Carmen Da Poian, em um e-mail atônito a respeito da tragédia. Tento digerir as palavras ásperas de Carmen usando outras palavras: sob a dor da montanha, outra dor, ainda maior, lateja.
Foi a frase de Carmen que me levou a procurar o ensaio de Octavio Paz. Vocês já conhecem meu vício: quando tudo falha, assim como os gulosos correm para a geladeira, eu corro para a literatura. Só que, em vez de me empanturrar com o desnecessário, me defronto com o que não quero ver. Como se em minha geladeira estivesse guardado não um belo suflê, ou um pote de sorvete, mas um cadáver. Em definitivo, a literatura não é para diletantes. Você acha que lerá só um “livrinho”, e encontra o que não quer.
Existe, de fato, uma linguagem — sistema de comunicação de idéias, sentimentos e experiências — que precisa ser reformada, de modo extremo, ou nada se modifica. Ou mudamos nossa maneira de encarar a tragédia, ou afundamos no lodaçal da repetição. Em seu belo ensaio sobre o nascimento da poesia (O poema, guardado em O arco e a lira), Paz nos defronta, porém, com um segundo obstáculo: “A poesia é desejo. Mas esse desejo não se articula no possível, nem no verossímil”. Com isso, ele nos empurra para o abismo: é além dos fatos e das circunstâncias, é ali onde as palavras falham, que devemos buscar um caminho.
É claro que medidas práticas e imediatas são indispensáveis. Não tomá-las seria indecente. Octavio Paz me ajuda a pensar, contudo, que ninguém deve iludir-se acreditando que ações objetivas como a contenção de encostas, ou o alargamento de rios, ou a recuperação de florestas nos manterão seguros. A insegurança (o sofrimento) está na base da vida humana e o difícil é aceitar isso. Seres de desejo, buscamos sempre coisas inexistentes. Voltando a Paz: “Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. Nada mais temos. Nenhuma obra humana “cura” o sentimento de desamparo — que a tragédia do Rio expõe de modo atordoante. Isso não é só um sentimento: é um fato, o mais doloroso deles.
Outra amiga, Maria Hena Lemgruber, me escreve para agravar ainda mais o que sinto. A propósito da tragédia, ela me envia, também por e-mail, um breve trecho de O mal-estar na civilização, o grande livro que Sigmund Freud publicou nos anos 1930. Outra vez, as palavras me obrigam a tomar distância e me afastar das ilusões salvadoras. Na aparência, o ensaio de Freud não tem relação alguma com o que vivemos. Só na aparência: suas palavras latejam, agora mesmo, em nosso peito.
Diz Freud, não sem uma ponta de dor: “O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e a dissolução, e que nem mesmo pode dimensionar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens”.
Ninguém pode negar a morte. Ninguém pode pretender que o fluxo inconstante e indecifrável da vida se estanque; tampouco deter um planeta solitário que se desmancha, como descreve Carmen. Claro, ele ainda pode sim ser preservado, e é uma luta digna e urgente. Isso não significa, porém, que o homem conseguirá, em um dia milagroso, dominar a natureza. Seremos sempre escravos: da natureza e do corpo. Por mais que façamos para retardar o envelhecimento, ou para cuidar da Terra, tanto nosso corpo, como nosso planeta, estarão sempre expostos a forças, ataques, colapsos que não poderemos controlar.
Creio que é esse o sentimento, mais devastador de todos, que a tragédia na montanha nos obriga a encarar. Isso significa que nada temos a fazer? Ao contrário. Significa, apenas, que o “a fazer” nunca basta. Por isso, aliás, a vida apesar de tudo prossegue. Chego, então, à terceira fonte de sofrimento nomeada por Freud: nossos relacionamentos com os outros homens. Creio que aí, mais do que em qualquer das duas outras origens de dor, temos a chance de conquistar um pouco mais. Quando se trata do outro, é possível ter bem mais do que imaginamos. A onda de solidariedade que cerca a montanha é uma prova disso.
Agora é com minhas insuficiências que me defronto: como é incrível precisar da literatura e da psicanálise para chegar a algo que os bebês já trazem no coração! A idéia de que a solidão e o abandono matam. A idéia de que precisamos sempre de um colo. A idéia de que o primeiro ato da vida, que ecoa até seu final, é um grito de espanto. Grito que se repete sempre que não conseguimos falar. Sempre que a linguagem — como o ar puro da montanha — nos falta.