No mais recente livro de Marcelino Freire, Bagageiro, lançado no fim do ano passado pela José Olympio, um capítulo se destaca: Ensaios de ficção. São pensamentos soltos, ideias dispersas, jogos com as palavras que transitam, justamente, na fronteira quebradiça entre a ficção e o ensaio. “Esse meu livro parará em uma estante de ensaios. Pensarão que eu penso”, ele ironiza. Marcelino sabe que o pensamento é traiçoeiro — o pensamento é uma dança ou, talvez, um jogo, ou, pensando mais um pouco, só um engano. Enganamo-nos que pensamos para nos apegar a alguma coisa. Só com esboços de pensamentos, ainda que em fragmentos e até fracassados, a mente ganha coragem e permanece de pé.
Talvez esse seja um pensamento deprimido, desalentado e até torpe. Um pensamento que aponta para certa apatia moral, um desânimo absolutamente desanimador. “Quem usa o verbo pensar não pensa”, Marcelino prossegue. É que o pensamento está muito além da exibição do pensamento — ele está, quase sempre, em outro lugar. Está sempre muito depois — ou será muito antes? Recordo aqui de uma coleção de clássicos, lançada há muitos anos pela Abril, chamada Grandes pensadores. Pois é assim que os pensadores se pensam: como “grandes”. Contudo, nos mostra Marcelino, o pensamento humano tem aparência um tanto esfarelada e frágil, é um pensamento pequeno, que se faz de rápidos cortes, de talhos que deferimos sobre a realidade, e então alguma coisa se abre e se ilumina, mas, infelizmente, logo passa. É uma tarefa menos para pensadores e mais para adivinhos. Ele escreve: “O escritor escreve para adivinhar o pensamento das pessoas”. Não para exibir seus próprios pensamentos — ao contrário, para tentar chegar a um lugar em que seu miserável pensamento não está, ou ainda não está, ou talvez nunca esteja.
“Os bichos pensam melhor quando não estão pensando”, continua o corajoso Marcelino. Para pensar, não é preciso saber que se pensa. Muito menos, considerar-se um mestre, ou “grande pensador”. Andamos pela rua pensando sempre em outras coisas, e em nossa mente muitos pensamentos se conflagram, se chocam, cada um tentando ocupar o lugar do outro para tomar a frente da cena. “Onde será que deixei o carro?” — “Será que ela vai se lembrar de mim?” — “A que horas é mesmo meu dentista?” — “Essa mulher parece alguém que eu conheço, mas não sei quem — ou será alguém que conheço e esqueci que conheço?” Os pensamentos entram em luta, e somos capazes de descer por meia hora uma mesma avenida e, ao fim da caminhada, nada saber a respeito do que exatamente pensamos. Talvez a isso os budistas chamem de meditação. Talvez não — mas aqui já é, de novo, o pensamento que se enrosca.
“O primeiro ensaio deste livro é sobre poesia. Podem colocar este livro em uma estante de poesia. Se houver”, prossigo com Marcelino. Eis o que o pensamento é capaz de fazer: começo com as ideias de Marcelino Freire, mas logo delas me desvio, e me perco. Eu as embrulho nas minhas, e já não sei mais se é ele, ou se sou eu quem pensa. O pensamento — eis talvez uma lei — não tem fronteiras. Não basta a si mesmo: está sempre escorrendo para outras direções. E dá prazer, faz gozar. “Prefiro a solidão dos ensaios”, anota Marcelino citando certo J. M. Moskvín, um ator russo. Logo em seguida, ele diz: “Ninguém vai procurar no Google para saber se Moskvín existiu”.
Eu vou. A Wikipedia não o reconhece. O Google o despreza — ou o enfiou em algum canto onde é impossível achá-lo. Isso, no entanto, é o que menos importa. “Mas que ele em algum momento falou isto, ah, falou”, Marcelino prossegue. Verdade ou ficção? É nessa fronteira que sempre derrapamos quando se trata do pensamento. “A solidão dos ensaios teria sido um bom título para este livro”, medita Marcelino. O ensaio — que o Houaiss define como “prosa livre, que versa sobre tema específico, sem esgotá-lo” — é um belo caminho para o pensamento, ele tem razão. O ensaio é aberto: não quer chegar a conclusões, tampouco se interessa em fechar questões, ou em provar coisa alguma. Sim, aí vem a solidão, porque no ensaio o principal é você pensar sozinho: não precisa se amparar em fontes, leituras, referências, nada, basta pensar.
O ensaio inclui, com satisfação, e sem qualquer repulsa, o erro. Errar faz parte de ensaiar. Não é assim nos bastidores do teatro e nos treinos dos atletas olímpicos? Marcelino rememora uma breve história: “Carrero confundiu Paul Auster com o gerente da pousada de Paraty. Ora, Carrero alegou, tomar café da manhã de óculos escuros. Só podia ser o gerente da pousada”. Mas era Paul Auster — provavelmente durante uma Flip. Por que só gerentes de pousada deveriam usar óculos escuros no café? É uma bela tese, mas sem explicação — e o ensaio não exige que ela se explique, apenas a apresenta. Nem sempre conseguimos reconhecer as pessoas certas, os lugares certos, os momentos certos. “Valter Hugo Mãe compara final de festa ao final de um romance. Quando acaba a diversão, está na hora do ponto final.” É preciso saber parar. O ensaio sabe parar, sabe arriscar-se a parar antes do momento que seria o “certo”. O ensaio é o lugar do erro — e é por isso que a palavra ensaio serve tão bem aos pensamentos de Marcelino.
São paradoxos, contradições, contrastes e, diz Marcelino, “o artista vive de contrastes”. A questão para o artista é o manejo e um relativo controle desses contrastes. “Herberto Helder diz que todo escritor traz consigo uma caixa de velocidades.” O poeta português fala, provavelmente, das várias marchas através das quais o escritor deve controlar seu andar literário. “Não consigo escrever sentado. Escreve-se caminhando”, acrescenta Marcelino. O escritor — como a vida — está sempre em movimento e o ensaio busca, antes de tudo, dar conta desse movimento. Emparelhar com ele — usando mais o acelerador do que o freio. Nos ensaios, predominam as perguntas, e não as respostas. As dúvidas, e não as soluções. Diz Marcelino: “Minha pontuação de estimação é a interrogação”. Até dessa afirmação, porém, ele duvida e a respeito dela se interroga: “Mas não tenho muita certeza disso”, admite.