Há um trecho nos Diários, de Lúcio Cardoso — que ganhei de presente de meu amigo Nonato, de João Pessoa — que vale , sozinho, uma longa reflexão. Este trecho me chegou assinalado e sublinhado pelo próprio Nonato, que, de alguma forma, se torna coautor dessas reflexões breves. Leio a edição lançada em 2012 pela Civilização Brasileira, editada por Ésio Macedo Ribeiro. Diz o fragmento que Nonato destacou, que se encontra ao pé da página 290: “Sem leitura certa, abro ao acaso um dos tomos do Journal de Julien Green e encontro uma frase que me perturba: ‘O verdadeiro romancista não domina seu romance, ele se torna seu romance, mergulha nele’. Por que motivo não havia reparado antes nessa anotação? Julien Green, que nunca se arrisca, que é todo compromisso e exclusão — Julien Green é o melhor romancista mineiro — dá uma regra sem segui-la. Ele sabe de que se amputou”.
O leitor pode perceber, desde logo, que muitas portas se abrem a partir dessa meia-dúzia de linhas. Primeiro ponto: sem desejar isso, Lúcio nos dá o método que devemos usar para a leitura de seus Diários. Devemos lê-los ao acaso, guiados pela sorte e pelo imprevisível, abrindo sem escolha uma página qualquer, recortando trechos e editando o livro em nossa própria mente. E é assim que faço. Eu não leio, eu “consulto” os diários de Lúcio. É assim também, ao acaso, que ele mesmo lê os diários de Julien Green. Neles, saltando de um lado para outro como um malabarista, pesca uma frase crucial: “O verdadeiro romancista não domina seu romance, ele se torna seu romance, mergulha nele”.
O escritor norte-americano de orientação francesa Julien Green (1900-1998) foi um importante autor católico, que teve muitos leitores no Brasil em meados do século 20, e depois foi quase completamente esquecido. Era um escritor obcecado pela questão do bem e do mal — e, em conseqüência, do certo e do errado, do permitido e do proibido. O gosto pelas dualidades marca toda sua obra, de mais de 40 livros. Seus célebres diários, em três volumes, foram publicados entre 1938 e 1946. No geral, a obra de Green é severa, metódica, dura, o que contrasta fortemente com a definição do “verdadeiro romancista” que Lúcio Cardoso dela arrancou. “Ele sabe de que se amputou”, conclui Lúcio, cheio de lucidez. Escreveu contra si mesmo, negou suas próprias palavras: não deve ter sido fácil.
De fato, os grandes romancistas mergulham em seus escritos, a tal ponto que a fronteira entre autor e obra se esgarça e se dilui. Leitor obstinado dos diários de Green, pergunta-se Lúcio Cardoso, porém, por que nunca deu atenção ao trecho que agora sublinha. Não seria porque, também dentro dele, Lúcio, existiria um segundo Julien Green? Não seria porque, ele também, nunca deixou de ser um “romancista mineiro”, cheio de cisões e de conflitos espirituais, dividido, todo o tempo, entre o mal e o bem? Lúcio diz a respeito de Green que ele “nunca se arriscou”, que era todo “compromisso e exclusão”. Não haveria algo dessa figura contida e desses freios espirituais na própria alma de Lúcio?
Um romancista — um escritor — não pode se deixar enfaixar pelos compromissos e pelas exclusões, tampouco se proteger dos perigos inerentes à palavra, abstendo-se de temas que o ameacem. Quantas vezes um escritor escreve a respeito do que não quer? Do que repudia, do que lhe traz mal-estar e angústia, do que ele abomina? Mas é ao alargar seu espírito até essas zonas obscuras e inadmissíveis que um escritor supera a si mesmo. Pensem em Kafka, em Proust, em Virginia Woolf, em Guimarães, em Clarice — em quanto tiveram que abdicar de si para enfim chegar a si? Por isso é muito perigoso, também, falar a respeito da própria obra. Fazendo isso, todo escritor corre o risco, grave, de “dar a regra sem segui-la”. Em outras palavras: corre o risco de pregar uma coisa (e Green no fundo foi um grande pregador), mas fazer outra.
Continuo a ler os diários de Lúcio Cardoso seguindo o método que ele mesmo nos propôs. Método já sugerido por meu amigo Nonato, que do mesmo modo oscilante se aproximou dos diários. Na página 171 — seguindo, ou melhor, antecipando os mesmos pensamentos —, Lúcio reflete sobre o desejo. O trecho se resume a uma longa frase de sete linhas. Destaco aqui os trechos que mais me interessam. “O coração nunca para de desejar”, anota Lúcio. São, portanto, a esses desejos que devemos seguir, e não a regras ou instruções exteriores. “Não renuncia ao conhecimento novo buscado com amor” — e aqui a novidade não é a mera moda, não é o efeito desta ou daquela teoria, não é um jogo fútil ou um lançamento comercial, mas algo que surge de sentimentos mais profundos. Lembrar “que nossa vida não ficou de todo isolada de uma outra de que se desejou tanto participar”. Devemos seguir sempre o desejo, ele nos guia, sem vacilar, sem cambalear, sem temores inúteis, “para que a mágoa não seja grande demais, a aridez insuportável e o fracasso como que total”. Existirão sempre o desgosto, a secura e o sentimento de derrota, mas o desejo — quando realizado — impede que eles sejam devastadores, impede que eles nos roubem a sensação de vida.
O desejo, é claro, é uma das molas que levam o escritor a escrever. Outra seria a consciência da solidão — e aqui já estou na página 531. Em uma breve nota, Lúcio Cardoso reflete sobre os riscos da solidão, que pode ser dolorosa e mesmo algo destrutiva, isso apesar de — especialmente no artista — tudo aquilo que ela pode nos dar. Escreve: “Não seria absurdo chamar de danação a extrema consciência da solidão no mundo”. Ruína, sim, já que ela fere e nos discrimina. Prossegue: “Consciência a um tal estado que o Universo adquire aos nossos olhos uma figuração autônoma, destinada, erguida em seu próprio eixo como um monstro em crescimento”. Lúcio foi um homem que experimentou na pele a monstruosidade da solidão. Ainda assim, cabe pensar, foi da solidão que tirou grande parte de sua escrita. Foi com a solidão ao seu lado, soprando em seu ouvido palavras atrozes, que ele produziu sua obra e, inclusive, esses diários. Esses diários que agora leio, aos trancos, como se tentasse agarrar meu próprio interior.