🔓 O sol

As artimanhas, em meio a alegrias e tristezas cotidianas, para ir enganando a morte
Ilustração: Oliver Quinto
07/04/2023

Para Solange Vidal Moreira

Parada em frente ao túmulo da mãe, respiro um ar raso. Detesto cemitérios e tenho receio de se respirar fundo demais, partículas de gente morta venham parar dentro das minhas narinas.

A mãe tinha mania de chegar em casa, depois de um enterro e lavar as mãos, imediatamente. Aquilo, nunca questionado, passou pra todos nós, em casa. Não é do morto que queremos nos livrar: é da morte.

Parada em frente ao túmulo da mãe que é também de um monte dos Vidal, coloco duas rosas que ela mesma plantou e que floresceram quando eu estava lá, na casa dela que é minha, ainda que na minha casa a mãe já não está. Olho a pedra de mármore, o nome dela lá, pra ter certeza de que de um pesadelo não se acorda. Logo aqui ela está, debaixo dessa pedra pesada, tão perto, tão morta, o mais morta possível. Estão também bem mortos o meu avô, a minha avó, tio, tias. Fiquei pensando que, caso morresse naqueles dias, eu também iria parar ali, com eles. Estão todos tão perto e, ao mesmo tempo, nesse além que leva a minha gente para onde nunca mais se vê.

Escrevo neste dia em que mais uma de nós morreu. São 27 de fevereiro. Hoje, minha tia, irmã da mãe, a mais próxima, vai se juntar à família dos mortos. Imagino uma viagem tranquila lá para onde o vento faz a curva porque a tia conversava com espíritos. Ela dizia que carregava o sol no nome. Era verdade. Ela se chamou a vida inteira, Solange. Penso na alegria dela e não entendo. A vida era normal; não tinha motivos pra tanta alegria. Ainda assim, era feita de uma coragem inabalável. Quando eu me sentia fora do eixo, ligava pra ela. “Vou te benzer, minha filha. Fecha os olhos.” Hoje, os olhos fechados são dela. Logo hoje que me sinto tão fora dos eixos.

A sensação em frente ao túmulo da família é de total finitude, esgotamento, derrota. Ainda que eu esteja ali a olhar para aquele triste espetáculo, vejo pouquíssima saída para a pergunta: o que fazer pra enganar a morte? Irreversível que é, leva o jogo a sério e não dá segunda chance. Mas de vê-la assim, cortando raízes sem cerimônia, penso que devo fazer alguma coisa para enganá-la. Afinal, a vida é um jogo que, em quantidade, ganho eu. Em qualidade, ela. Ela é que dá o xeque-mate. Mas é meu o privilégio da diversão, dos amores, dos prazeres, do trabalho. Quem toma vinho enquanto fala de presente, passado e futuro não é a morte. Quem se espalha em geografias para encontrar e viver amores não é ela. Quem vai vendo a vida crescer, se modificar sou eu, não é ela. Ela sai de um buraco, uma espécie de caverna. Sai com fome e vai devorar cabeças por aí. Cedo ou tarde, nos encontra. Mas enquanto não nos escolhe, quem está acordado e se divertindo, doendo e se recuperando somos nós. É a nossa pele que se arrepia, transpira, enruga, é tocada. A morte, coitada, ninguém quer. É uma perdedora que, para triunfar, tira, subtrai. Existe na derrota.

Os meus mortos eu carrego na palavra, no sobrenome, no semblante da filha, no perfil do filho, nas pernas que cruzo e lá, no contorno que se forma, vejo a família. Salvo a vida de cada um deles porque estou viva até que me provem o contrário. E quando chegar esse dia, quero, como a minha tia, ir pra esse além levando um sol, senão no nome, nos olhos.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

Rascunho