🔓 A aranha

A amizade com insetos que passeiam pela casa enquanto a Nilza busca maneiras de eliminá-los a todo custo
Ilustração: Amanda Cestaro
04/04/2023

Cheguei em casa — na casa em que passo os fins de semana, mais perto da natureza — e, ao abrir a porta, uma aranha na parede branca correu assustada para trás da moldura de um espelho. Gosto de aranhas e, em vez de tirar o espelho e caçar a personagem, memorizei a cena para acompanhar os próximos movimentos.

No dia seguinte, pela manhã, flagrei novamente a aranha do lado de fora da moldura, receosa e disposta a desaparecer ao primeiro gesto. Dessa vez, antes de ela dar no pé, notei que lhe faltava uma perna. Fui pesquisar para saber se uma aranha tem dificuldade em viver sem uma das pernas e constatei que, quando se tem oito, perder uma não é lá grande coisa.

Na terceira vez, a hóspede já se mostrou mais à vontade, mesmo quando me aproximei para medir sua reação. Umas e outras, ficamos amigos e a coisa se inverteu: agora ela saía de trás do espelho quando eu passava ou estava por perto.

Tomei o cuidado de avisar a Nilza que a aranha era da casa — já estava traumatizado por ter me esquecido de falar com ela sobre uma dupla de formigas (não posso afirmar que era um casal), que estava frequentando uma orquídea na sala, interessada em beber o néctar que a planta expele durante a floração. Por sinal, uma orquídea-aranha — pura coincidência, juro. Dessa vez eu não ia pecar pela displicência já que a Nilza não tolera nenhuma espécie de insetos e aprecia toda e qualquer substância capaz de eliminá-los, fazendo uso do chinelo ou do que tiver em mãos para atacar os bichos. Nunca tinha visto tanta felicidade quando, numa ocasião, ela chegou em casa com uma raquete. De longe eu pensei que estava aprendendo a jogar frescobol até descobrir que ela fritava moscas e pernilongos no maior sadismo com aquela coisa.

A vida dos bichos na natureza não é nada fácil, isso a gente já sabe. A vida das plantas também não é brincadeira, com toda a sorte de pragas, a competição pela luz do sol e principalmente — nas minhas plantas — pela ação das formigas cortadeiras. Entendi, na prática, o que o Mário de Andrade queria dizer quando jocosamente decretou no seu Macunaíma: “Se o Brasil não acabar com as formigas, as formigas acabam com o Brasil”. Os caras da indústria de veneno presumivelmente levaram ao pé da letra, e o Brasil venceu a contenda. Lá em casa, no entanto, quem continua ganhando é a formiga.

Mas, voltando à aranha perneta, faz uns dias que não a vejo. A Nilza sustenta que não encostou a mão nela, e nisso eu consigo até acreditar, já que ela tem um pé atrás com as aranhas e só a atacaria com uma vassourada ou coisa pior. Às vezes, é melhor a gente pensar positivo para não encher a cabeça com suposições impossíveis de confirmar.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

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