🔓 Essa florzinha

A noção social do feminino é de um feminino cego, submisso, obediente
Montagem de “O grito”, de Edvard Munch
09/03/2023

Ontem foi dia das mulheres.

Um feminicídio — mulher morta apenas pelo fato de ser mulher — a cada 6 horas no Brasil.

Eu quero mais é que você enfie essa florzinha no cu.

É impossível, para mim, pensar em feminismo e em todo o conceito que tenho de igualdade, equidade e justiça, sem pensar nos meus pais. Isso, na minha geração, é bem raro. Completo 52 bem vividos domingo agora, dia 12. Ou seja, a geração dos meus pais está na faixa dos 70 e poucos, 70 e muitos. Eles são um ponto tão fora da curva que é até difícil de explicar o que é ser filha deles.

O perfil #leiaelvira no Twitter me perguntou outro dia se minha mãe gostava da Rita Lee. Não, o perfil não é mantido por mim ou por ninguém da família. Sim, todos nós adoramos as músicas dela.

Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão

Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta

 Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem.

Tamojunta, Rita.

Voltando do oftalmo, pupila dilatada, cega feito uma toupeira bêbada, lembro que minha mãe morreu sem óculos. Para quem a conheceu, o estranhamento é grande. Estou convencida que ela nasceu de óculos. Acho que a grande diferença entre uma morte súbita ou não é a presença ou ausência de óculos.

Merleau-Ponty (que em família atende pelo nome de Merlot, como o vinho) tem uma fala linda no O olho e o espírito:

O olho vê o mundo, e o que falta ao mundo para ser quadro, e o que falta ao quadro para ser ele próprio e, na paleta, a cor que o quadro espera; e vê, uma vez feito, o quadro que responde a todas essas faltas, e vê os quadros dos outros, as respostas outras a outras faltas.

Eu já usei essa citação tantas vezes que dá até um pouco de vergonha mas não é lindo?

Em aulas, costumo dizer que se você olha para um quadro e só vê o quadro, está vendo tudo errado. Acho as análises puramente formais excruciantemente chatas.

Além de todo o contexto da obra, temos também as questões extradiegéticas. São essas, disparado, as de que eu mais gosto.

Por exemplo, O importuno (1898), do Almeida Júnior, fala mais sobre quem não está na tela.

Ou, ainda, acho divertidíssimo a quantidade de pessoas que só percebe que a figura de O grito (1893), do Edvard Munch, está tampando os ouvidos depois que a gente mostra.

Os videogames entenderam isso com perfeição. O perigo é o que não vemos. O inimigo, o assustador, aquilo a ser evitado ou assassinado está no invisível, na sombra, fora da vista.

Diegese é um termo que se consagrou no cinema ou nasceu nele, sei lá. Preguiça de pesquisar.

Por falar em cinema, no filme 39 degraus, do Hitchcock, enquanto a personagem Pamela representa aquela que sabe demais, está de óculos. Quando passa a ser uma femme fatale, está sem óculos. Ou seja, a “feminilização” da personagem, que a transforma de um cérebro em um corpo, passa pela remoção dos óculos. Ela não pode ver tão bem assim. A noção social do feminino é de um feminino cego, submisso, obediente.

Então, repetindo, enfia essa sua flor no cu.

Ah, eu sou tão polida, educada e comportada. Até me emociono.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho