Nas primeiras páginas de A morte do pai, de Karl Ove Knausgård (o primeiro livro de A minha luta, obra composta por seis volumes), pode ler-se:
se o teu pai falecer no jardim num ventoso domingo de Outono, vais carregá-lo para dentro de casa; se não for possível, pelo menos vais cobri-lo com uma manta. Mas este impulso não é o único que temos em relação aos mortos. Não menos evidente do que o impulso de ocultarmos os corpos, é o facto de os colocarmos sempre ao nível do solo o mais rapidamente possível. É quase inconcebível um hospital que transporte os seus mortos para cima, que coloque as suas salas de autópsia e de cadáveres nos andares mais altos. Os mortos são colocados o mais perto possível do solo. E aplica-se o mesmo princípio a quem cuida deles; uma companhia de seguros pode muito bem ter as suas instalações no oitavo andar, mas não uma funerária.
Tenho recordado o início desta obra do escritor norueguês por se tratar de uma reflexão lúcida sobre a forma como lidamos com a morte e sobre a dificuldade que temos em encarar cadáveres. Se sempre tivemos receio de confrontar os corpos sem vida — estando a sociedade organizada de forma a só sermos confrontados pelo período mais breve possível e apenas quando estritamente necessário —, quando vivemos os primeiros meses da pandemia de covid-19, a morte passou a ser uma abstração por completo. Recebíamos números compridos através das notícias, mas não sabíamos quem é que morria nem víamos funerais nem as pessoas que sofriam as perdas. Quem perdeu familiares próximos não pôde assistir aos funerais nem receber um abraço de apaziguamento. Tudo parecia estar a ser tratado de forma objetiva, racional, longe da vista e longe do coração, como se houvesse um modo higiénico de lidar com o assunto.
Se não estamos preparados (e talvez nunca estejamos) para lidar com o cadáver de alguém que nos é querido, os estragos emocionais que advêm por não se poder fazer uma despedida, por mais breve que seja, ou um ritual fúnebre onde sentimos pelo menos o apoio e a cumplicidade de quem fica e também se encontra num estado de sofrimento, somos então obrigados a concretizar o vazio repentino e a ter de passar pela dor incomensurável da incompreensão.
Nunca compreenderemos a morte, é certo. O ser humano nunca estará preparado. Para Schopenhauer, por exemplo, o medo da morte não é causado pelo fim da vida mas sim pela destruição do nosso organismo. Segundo o filósofo alemão do século 19, os seres dão mais atenção ao corpo do que à essência e, por isso, vivem angustiados perante a morte. Há muito que a ocidente vivemos estritamente focados na existência dos corpos; a essência, ou como os antigos lhe chamavam, a alma, é algo desconsiderado pela maioria. Perder alguém ou falar em números de mortos sem termos a noção dos corpos, é para nós algo absolutamente abstrato e assético, uma vez que o corpo é tudo o que temos como certo.
Nos primeiros tempos da pandemia de covid-19 — uma espécie de revisitação ao século 14 e à peste bubónica, que dizimou entre um terço e metade da população portuguesa —, encontrávamo-nos sem uma solução menos má (não há nenhuma boa). Se, por um lado, criámos há muito um esquema social onde evitamos o confronto físico com os mortos dos outros, e condicionamos a presença dos nossos ao período mais breve possível, por outro, perdemos totalmente o acesso a uma despedida digna. Tanto na vida como na morte somos obrigados a aguentar sem ver. Não há alternativa.
Para quem fica, cabe ficar rente ao chão, com o luto por fazer e a dor distendida para a vida inteira; para quem parte, relembro novamente as palavras de Karl Ove Knausgård: “Para o coração, a vida é simples: bate enquanto pode. Depois para”.