🔓 Conhecer a mãe que já morreu

Objetos que nunca teriam permissão para entrar na casa da mãe, hoje moram aqui, de onde escrevo enquanto olho para alguns desses grãos de tempo
Ilustração: João Verderame
25/02/2023

Voltar para casa já não é isso: voltar. De fato, parece cada vez mais longe desse sentido de retorno. Não foram só os rostos que foram se modificando; a mobília da minha casa que é a casa da mãe que ficou com o pai também foi sendo modificada. É uma mistura estranha de objetos que ela comprou e novos ares em forma de um sofá, uma cadeira, um jogo de copos, que ela nunca escolheria. Uma forma de pegar o tempo com as mãos é essa: coisas desencontradas em casa, objetos que nunca teriam permissão para entrar na casa da mãe, hoje moram aqui, de onde escrevo enquanto olho para alguns desses grãos de tempo, de espaço, de lacuna preenchida com outro vazio que é o da ausência.

Minha mãe colecionou livros e a maioria deles, ela leu. Eu e ela fomos, dentro desta casa, as pessoas mais interessadas em ler. Talvez, só ela entendesse que estou, realmente, trabalhando quando bato estas teclas, que gostaria de não ser incomodada, que não vou atender à campainha, que não quero sair porque prefiro ficar aqui, escrevendo. Ela me deixaria quase que nesse estado que, para os outros, é o abandono completo. É o não checar e verificar se estou respirando, se quero café, se quero sair, espairecer faz bem enquanto respiro e engulo os ácaros e a poeira acumulada dentro do que não é tocado na rotina.

E que não pareça ingratidão. É tão bom ser interrompida com um café fresco, com um olhar que veio ter certeza de que tudo está em ordem, que não estou chorando de saudade da mãe, que o vazio ecoante da casa não me perturba o sono e a sesta porque faz calor e já não é possível fazer mais nada além de dormir, abraçada ao langor e ao ar quente, lento e pesado que embala o depois do almoço.

Quando estive nesta casa, uma outra vez, ajudei meu pai a recuperar os livros da mãe e alguns meus que ainda flutuam por aqui. Organizamos a estante da sala e guardei lá os títulos que ela leu.

Não consigo evitar sentir raiva de mim mesma pelo meu atrasado reconhecimento de terreno. Enquanto eu me ocupava de contestar a mãe, brigar com ela e rejeitar toda e qualquer interferência dela na minha vida, ela lia Clarice Lispector, Aristóteles e Platão. António Lobo Antunes, Fernando Pessoa, Eduardo Galeano e Guimarães Rosa.

Mas, talvez, a descoberta mais importante da minha estadia nesta casa que é ainda maior porque não tem a mãe dentro – e a mãe ausente é uma coisa enorme – seja um livro do Darcy Ribeiro que encontrei entre tantos outros livros. Nele ela anotava observações, destacava trechos em amarelo, estudava aquelas linhas como quem quer sorver algo precioso.

Minha mãe viu de perto a ditadura. Tinha a sua revolta e senso anárquico em dia. Ouvia, e fazia as filhas ouvirem, todo Chico, Milton, Caetano e toda Nara, Elis, Gal e Betânia possíveis. O que ela não viu de perto foi a população desmemoriada que atravessa este meu tempo que já não é o dela. População que despreza a democracia conquistada com tanta reivindicação, às custas de tanta vida. Não, isso ela não viu. Vejo por ela e passo os olhos no livro do Darcy Ribeiro. Poderíamos trocar ideias, mas não podemos. Poderíamos nos fortalecer nas colocações valiosas do ensaísta e antropólogo. Talvez o que mais me faça falta seja a cabeça dela. Dentro daquela mente curiosa estava uma disposição constante para o que mais se extingue hoje: o debate.

Talvez a mãe tivesse um plano de conscientizar as filhas para a política. Mas é difícil saber, uma vez que ela ficou longe dos sermões. Em vez disso, uma rotina rica em música, livros, conversa, a possibilidade de mudar de opinião, mesmo quando havia certeza dela.

Havia qualquer coisa de solitário na mãe.

Lembro-me do escritor de livros de Geografia que ela recebeu aqui em casa. Era como se recebêssemos um Deus. Das lembranças daquela tarde longa que passou aqui o David Márcio, ficou a dos olhos brilhantes da mãe, conversando com ele por tantas horas que o sol se pôs.

Hoje, ela já não teria esse tipo de solidão. Eu estaria com ela. Em O povo brasileiro ela grifou na página 173: “desde a chegada do primeiro negro, até hoje, eles estão na luta para fugir da inferioridade que lhes foi imposta originalmente, e que é mantida através de toda sorte de opressão na condição de trabalhadores comuns, iguais aos outros, ou de cidadãos com os mesmos direitos”.

Ela deixa, assim, minha certeza de que nunca questionaria o racismo estrutural e que, sem vacilos, estaria sempre no caminho justo da História. Vai, mãe, ser gauche.

Nara Vidal

É mineira, formada em Letras pela UFRJ e Mestre em Artes pela London Met University. É escritora, tradutora e editora. Autora de livros infantis e ficção adulta. Seu romance de estreia, Sorte (Moinhos), traduzido na Holanda, foi um dos vencedores do Prêmio Oceanos em 2019. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mapas para desaparecer (Faria e Silva).

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