🔓 A Dona Lourdes

Tem algo de mágico na energia de um lugar em que todo mundo espera para se sentir melhor
Ilustração: FP Rodrigues
20/02/2023

— Você precisa se benzer.

Eu ouvi essa frase e variantes umas vinte vezes ou mais nos últimos dias. É fato que coisas estranhas vinham acontecendo, acidentes improváveis, pequenos golpes do azar, mais sustos que seria recomendável por qualquer cardiologista consciente. A solução parecia estar ali, bem ao meu alcance: eu precisava me benzer.

O curioso é que das muitas pessoas que vieram me falar isso, ninguém sabia me dizer aonde é que eu devia ir pra me benzer. Então, sim, eu já estava convencida de que eu precisava, mas qual seria o próximo passo? Adotei uma postura um pouco reativa, confesso, e todo mundo que vinha pra mim com essa história, ouvia logo um “mas onde, onde é que eu vou me benzer?”.

Algumas pistas começaram a aparecer, uma amiga disse que uma conhecida de outra amiga sabia da maior benzedeira da região. Com alguma insistência (eu implorei), passados alguns dias, eu tinha em mãos o contato da benzedeira. Dona Lourdes, liga lá, você precisa.

Aqui um parêntese: a minha total inabilidade e desconhecimento dos meandros de uma benzeção em nada tem a ver com descrença ou desrespeito. É a mais pura inexperiência e nada mais. Dito isso, sigamos, eu com o telefone na mão, prontíssima para marcar uma consulta com a Dona Lourdes.

— De preferência, depois de 19h, se você puder. Quinta ou sexta, tem?

Dona Lourdes, a voz doce mas bastante objetiva do outro lado da linha, me explicou que não era assim que funcionava. Ela benzia toda quarta e sábado, de 15h às 16h, por ordem de chegada. Ótimo! Assim que desliguei, me dei conta de que eu não tinha perguntado quanto ela cobrava, mas não quis incomodar de novo. Chamei minha amiga, a que tinha me passado o contato, que devia ser pelo menos um pouquinho mais experiente que eu nesse negócio.

— Amiga, eu posso estar enganada, mas eu acho que ela não cobra.

Fazia sentido, mas será que se eu precisasse ela aceitaria um pix? Se eu pedir benzeção pra minha família inteira, muda alguma coisa? Se ela souber de tudo o que aconteceu, ainda vai me aceitar? Questões.

Eu precisava me benzer e já era sábado e ainda não eram 14 horas, mas eu já estava na rua e pensei que não faria mal chegar um pouco mais cedo, eu esperava. Ou ainda, com sorte, quem sabe Dona Lourdes não se animava a me atender um pouquinho antes? Às 14h12 eu estava na porta da casa da melhor benzedeira da região. E não era a única: a fila já virava o quarteirão. Famílias, crianças, uma senhora com uma cadeira de praia. O filho guardando lugar para a mãe que esperava no carro, duas irmãs gêmeas, uma de cabelo roxo e outra não. Esperamos todos, e como é interessante esse espaço-tempo, o sol rachando na nossa cabeça e mesmo assim todo mundo feliz. Até eu tava feliz, tem algo de mágico na energia de um lugar em que todo mundo espera para se sentir melhor, pra se curar, pra cuidar de si e dos seus.

Pontualmente às 15 horas o portão se abriu, entramos todos, nos acomodamos, Dona Lourdes não estava sozinha. Nem eu. O que aconteceu ali dentro talvez não caiba nesse texto, mas as pessoas estavam muito certas: eu precisava me benzer.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

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