🔓 O direito de calar

Falar apenas o necessário e o conveniente: esse é o exercício diário para manter o mundo menos barulhento
Ilustração: Amanda Cestaro
07/02/2023

Tenho optado cada vez com mais facilidade pela quietude. Ainda não estou certo se por falta de entusiasmo com o fluxo constante de vozes que brota no brejo e no creme do universo digital ou se pelo efeito da prática autoimposta nos últimos tempos. Falar apenas o necessário e o conveniente: esse é o exercício. A cabeça, por sua vez, continua muito mais ativa do que considero confortável, no moto-perpétuo de cercar ideias. Quem descobrir onde fica o botão de desligar o raciocínio vai superar Buda, Sócrates e Lao-Tsé, pensei enquanto descia o elevador.

Ao passar pelo portão, o entregador de pizzas perguntou:

— É você o sr. Andrade do 519 que pediu meia calabresa e meia portuguesa?

Respondi com um simples “não”, adornado com um discreto sorriso pra não soar antipático. Podia ter dito que o Andrade é um pilantra, que amassou meu carro na garagem e se fez de morto, que votou contra a construção de uma rampa para cadeirantes na assembleia, que destratou grosseiramente a dona Carmem porque o poodle dela latia toda vez que ele abria a porta. Mas para manter o intento de economizar na garganta, só disse um modesto “não”.

No banco, o rapaz do caixa falou do seguro de vida, da previdência privada, da conta remunerada e da importância de a gente ficar cagando de medo do futuro. Dessa vez, economizei até o “não”, só chacoalhei de leve a cabeça de um lado para o outro. Podia ter falado que não tenho planos de morrer logo, que a conta remunerada é uma cascata e que sempre que posso mantenho uma distância segura do banco. Todo o verbo economizado para reforçar a prática da vocalização mínima.

Na padaria, tive que gastar um pouco mais: falei “mais queimadinho”, “no débito” e “obrigado” – só porque a atendente disse que gostava da estampa da minha camisa. Podia ter falado que era gentileza dela, que o cheiro de pão estava delicioso e essas coisas que a gente fala na padaria, mas optei por manter firme o propósito de preservar a língua sossegada.

De volta para casa, minha companheira contou do susto que tomou quando o alarme de incêndio disparou no treinamento de segurança do prédio. Falou do acidente aéreo que vitimou cento e cinquenta e sete pessoas na Etiópia e perguntou se eu não havia me esquecido de nada. Expressei espanto por conta do susto, fiz cara de desolado por causa do acidente aéreo e, sobre o suposto esquecimento, arrisquei dizer um “não” duvidoso – quem começar a treinar para falar menos vai logo perceber que o “não” é muito resolutivo e que há uma variedade enorme de “nãos” para as mais diversas situações. Podia ter pedido desculpa por não avisar sobre o treinamento dos bombeiros, aproveitar e melar a viagem de réveillon que eu não queria fazer e falar dos pães que havia lembrado de comprar mas preferi manter a calma e dizer apenas aquele instável “não”.

— Você é mesmo um chato insensível! E o nosso aniversário de casamento?!

Aí tive que empregar todo o verbo economizado nas últimas semanas, pedir desculpas diversas vezes, gastar com interjeições e adjetivos (quase tive câimbras na língua). Depois disso, fui dormir assim na primeira brecha. O sono é muito amigo de quem decide economizar qualquer tipo de coisa.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

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