Poemas infantis de Cecília Meireles (1)

“Sonho de Olga” e “O Menino Azul” carregam a força de uma poesia rítmica, imagética e com temas atemporais
Cecília Meireles, autora de “Romanceiro da Inconfidência”
01/12/2022

O livro Ou isto ou aquilo, de Cecília Meireles, é um primor. É um livro, como toda grande literatura dita infantil, para todas as idades. Poesia rítmica, imagética e com temas atemporais. Comento nesta e nas duas próximas colunas alguns poemas do livro. O primeiro é Sonho de Olga: “A espuma escreve/ com letras de alga/ o sonho de Olga// Olga é a menina que o céu cavalga/ em estrela breve// Olga é a menina que o céu afaga/ e o seu cavalo em luz se afoga/ e em céu se apaga// A espuma espera/ o sonho de Olga// A estrela de Olga chama-se Alfa/ Alfa é o cavalo de estrela de Olga// Quando amanhece, Olga desperta/ e a espuma espera/ o sonho de Olga// A espuma escreve/ com letras de alga/ a cavalgada da estrela Alfa// A espuma escreve com algas na água/ o sonho de Olga”. No poema é descrito o sonho noturno de uma criança. Há dois movimentos no poema: o primeiro fixa a personagem Olga no céu montada em seu “cavalo de estrela”. A estrela que Olga cavalga, como informa o eu lírico, é a Alfa (a mais brilhante de uma constelação). A imagem que melhor expressa o movimento da estrela que é cavalgada é: “[o] cavalo em luz se afoga/ e em céu se apaga”. Vívida imagem do rutilar e do ofuscar da estrela. O segundo movimento do poema se dá quando, ao amanhecer, o sonho vivido por Olga vira lembrança e registro poético: “a espuma escreve/ com letras de alga/ a cavalgada da estrela Alfa”. O sentido da palavra “sonho” no texto é rico, remetendo especialmente a uma interioridade intensa, que aspira à independência. O ritmo se eleva com o emprego recorrente da paronomásia: “alga”/“Alfa”, “alga”/“Olga”, etc. Vejamos agora O Menino Azul: “O menino quer um burrinho/ para passear/ Um burrinho manso,/ que não corra nem pule,/ mas que saiba conversar// O menino quer um burrinho/ que saiba dizer/ o nome dos rios/ das montanhas, das flores/ — de tudo o que aparecer// O menino quer um burrinho/ que saiba inventar/ histórias bonitas/ com pessoas e bichos/ e com barquinhos no mar// E os dois sairão pelo mundo/ que é como um jardim/ apenas mais largo/ e talvez mais comprido/ e que não tenha fim// (Quem souber de um burrinho desses/ pode escrever/ para a Rua das Casas,/ Número das Portas,/ ao Menino Azul que não sabe ler)”. É um poema sobre a amizade, o acolhimento, a boa companhia. Dois personagens, como visto, figuram nele: um menino azul e o objeto de seu sonho/desejo: um burrinho. Trata-se de um burrinho que, diferente dos demais, não serve (ou não serviria, já que é idealizado) apenas para montar, mas para conversar, nomear as coisas, contar belas histórias, andar mundo afora, enfim, fazer companhia. Uma revelação é feita no desfecho do poema: o menino azul é analfabeto (inversão de posições, já que o burro é instruído). Daí o menino idealizar ou mesmo necessitar de uma companhia que lhe nomeie as coisas e lhe conte as histórias que ele não pode ler nos livros. O sentido da palavra “convivência” ecoa forte desse poema. E nos toca a condição de analfabeto do menino.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

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