No metrô, vejo a moça gorda em pé, encostada naquele pedaço de parede entre a porta e o primeiro banco. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Vejo nela as marcas dos abusos recebidos, das ofensas ouvidas, da desconsideração recebida. É uma moça linda, vaidosa, bem vestida, cabelo impecável, maquiada. Lê um livro, não consegui ver qual mas não importa. Certamente mais interessante do que todos os pseudomachos com quem já teve o desprazer de se relacionar. Ela tem um olhar baixo, triste. Quantas e quantas vezes já ouviu que era a pessoa certa para o trabalho mas, por ser gorda, será passada para trás por alguém mais “apresentável”. Quantas e quantas vezes já chorou sozinha no chuveiro porque alguém lhe disse que jamais a amaria enquanto fosse gorda. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Suas incontáveis qualidades diminuídas, obliteradas, por não satisfazer a fantasia do outro sobre o que é ou deixa de ser o corpo desejável. Não me venham com ah mas a saúde. Saúde se mede. Triglicerídeos, colesterol, açúcar, pressão, o que você quiser. O que a mulher gorda não satisfaz é a expectativa social do controle sobre o corpo do outro. Eu quero que se foda. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Fui gorda mais de dois terços da minha vida, da primeira à última menstruação. Fui-sou magra antes e depois disso. Mas não, Carolina, imagine, você não tem problemas hormonais, basta parar de comer no McDonald’s. Ela sou-fui eu, sempre serei eu.
Mesmo sabendo de tudo que passo-passei por ser-sido gorda, o babaca do meu cunhado discutiu comigo por dias, afirmando que gordofobia não existe. Ele, gay, sabe na carne o que é sofrer preconceito e, no entanto, mesmo assim, na primeira oportunidade, virou opressor. De todas as ofensas recebidas, de todas as vezes em que minhas dificuldades e minha dor foram ridicularizadas, essa foi, de longe, a que mais me doeu.
A moça não senta no banco vago. Ficará desconfortável, apertada, constrangida. Fica em pé. Encaixou-se no vão, feliz por não estar na passagem de ninguém. A moça apoia as costas na parede, ligeiramente inclinada para usar o vetor de força a seu favor e não precisar segurar nas barras de metal do banco. Sabe que sua presença incomoda. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Batom vermelho como o meu. É uma declaração: sou gorda mas estou viva. A calça jeans comprada em loja para gordo não está na moda, não tem marca conhecida, marca boa. Desenvolvi uma raiva que nem te conto de roupa de marca. Hoje elas cabem em mim mas eu jamais caberei nelas. A moça está de fones mas, ao contrário de mim, escuta a velhinha pedindo informação. Tira um dos fones da orelha, sorri e responde. Ela-eu não pode se dar o luxo de se isolar, de não ouvir o ambiente. O comentário escroto vem de onde menos se espera e é necessário saber qual imbecil evitar pelo caminho. Me dou conta de que só passei a ouvir música mais alta depois de emagrecer. E me envergonho disso. Diminuo o volume. Ela sou-fui eu, sempre serei eu.
Um ex-namorado me disse que precisava se proteger emocionalmente e que evitava se entregar mais no relacionamento porque eu era gorda. Disse isso com todas as letras. Em homenagem, fiz a exposição Não me depilei para isso. Porque eu apanho mas também sei bater.
A moça guarda o livro na mochila e pega um crachá. Pendura no pescoço. Suspira. Mais um dia em que será preterida em uma promoção porque não é o padrão que o cliente quer ver, porque não dorme com o chefe, porque não sucumbe à pressão de ser aquilo que não é, porque qualquer outra idiotice. Ela sou-fui eu, sempre serei eu.
Uma vez, uma das pessoas que eu mais amava me disse que estava muito preocupada com o meu futuro porque, como eu era gorda, não arrumaria emprego “nem de caixa das Casas Bahia”. Ontem meu pós-doc foi aprovado. Então, eu quero que você se foda.
Ela sou-fui eu, sempre serei eu.
E nós duas mandamos você à merda.