🔓 Chief Agrado in Office

Os poderosos gatos ingleses, os “inúteis” gatos domésticos e a necessidade de pensar em si mesma
Ilustração: FP Rodrigues
27/10/2022

Liz Truss renunciou. “Certeza de que isso foi obra do Larry” é o primeiro pensamento que passa na minha cabeça. Ele não gostou dela desde o início.

Larry é o Chief Mouser to the Cabinet Office, gato oficial do primeiro-ministro do Reino Unido, em Londres. Esse nobre cargo existe desde o século 16, criado durante o reinado de Henrique VIII. Apesar de a função existir desde então, o primeiro gato a receber o título oficialmente, em 2011, foi o Chief Mouser atualmente no cargo, Larry.

Larry trabalhou para David Cameron, Theresa May, Boris Johnson e Liz Truss. Encontramos com facilidade fotos do gato com famosos e importantes, como Barack Obama.

Larry é próximo do poder. Entra governo, sai governo, o gato permanece. Chief Mouser é um cargo de confiança, afinal de contas. Esse é o meu paradigma de influência política. Ao contrário da inútil família real, o Chief Mouser trabalha e não é um cargo hereditário. Existe até uma recomendação de não dar muitos agrados para o felino, para não prejudicar sua performance como mouser.

O jornal Daily Star fez uma aposta, via transmissão ao vivo, sobre quem duraria mais: uma alface ou a Liz Truss. A alface venceu. Ou seja, não era exatamente popular. Quarenta e quatro dias no poder foi um recorde, o mandato mais curto da história britânica. Se consideramos o luto pela morte da rainha Elizabeth II, Truss trabalhou de fato uns 15 dias. Antes dela, quem ficou menos tempo no poder foi George Canning, que morreu depois de 119 dias de governo. Já tinha gato nessa época, mas era um gato ainda sem título oficial.

A gata do meu filho, Eva Perón, é da família real. É absolutamente inútil. Serve para ganhar carinho e agrado. Eva Perón é plena, apenas existe e isso parece ser suficiente. Assim como o Larry, ela manda em casa. Mais esperta que o Larry, não precisa fazer absolutamente nada em troca desse status.

Temos o hábito de atribuir o adjetivo “inteligente” a animais, especialmente domésticos, que entendem e fazem o que pedimos. Fulaninho, pega o jornal, e lá vai o cachorro pegar o jornal. Fica a velha pergunta: o bicho é inteligente quando faz o que você quer ou quando faz o que ele quer?

Observo pessoas a minha volta que são, no fundo, cachorros adestrados. É o sujeito que compra uma roupa pela grife. É a mulher que não coloca batom da cor que gosta porque o namorado acha que isso é “cor de puta”. É o idoso que aceita ser tratado como uma planta. O cara que puxa o saco do chefe. Pessoas que perdem, pouco a pouco, dia a dia, a sua essência. Pessoas que buscam o jornal, abanam o rabo e ainda acham que venceram o sistema.

Lembrei do maravilhoso monólogo da Agrado, em Todo sobre mi madre, do Almodóvar, que, acho, já citei aqui.

Además de agradable, soy muy auténtica. […] porque una es más auténtica cuanto más se parece a lo que ha soñado de sí misma.

Eu adoro essa cena. Faço questão de não esquecer dela e de sempre buscar ser o que sonhei de mim mesma.

Essa frase é muito poderosa.

Vejam: o que sonhou de si mesma.

Um: sonhar, não fantasiar. Tem diferença.

Dois: de si mesma. Não do outro, não sobre o outro e não a partir do outro. O outro não entra nessa equação.

Estou exausta. Consegui terminar de escrever o meu pós-doc. Tenho um quizilhão de coisas para fazer. E outro quinquilhão de contas a pagar.

Sei que não venci o sistema.

O que me resta é que, além de legal, sou muito autêntica.

Não vou pegar o jornal e não vou abanar o rabo.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho