🔓 Filho de peixe

As muitas maneiras de encarar os desafios cotidiano, inclusive aquela louça suja amontoada na pia
Ilustração: Juliano Soares
15/09/2022

Vi nas internets da vida: Nordestino não diz: “Esqueci de fechar a porta ontem!” Ele diz: “Vixe, a porta dormiu aberta!”.

Meu filho, quando estava aprendendo a dirigir, não dizia que o carro tinha morrido. Dizia que ele tinha matado o carro.

Mais ou menos na mesma linha, temos a morte morrida e a morte matada. O que, por sua vez, me lembra que, em grego, ambrósios e athanásios são coisas diferentes. Podemos traduzir ambos para imortal, mas na verdade o primeiro é alguém que não pode morrer e o segundo, alguém que não pode ser matado. A diferença é gigantesca.

Meu pós-doc que, tenho fé, vou conseguir terminar, é sobre o Morte e Vida Severina, do João Cabral de Melo Neto. Ô coisa difícil. Meu maior debate interno é sobre quem acaba com quem primeiro. As estatísticas me desfavorecem. Terei uma morte matada.

Por falar em academicismos, sobre a conclusão de uma etapa, existem os que dizem “fulano formou” e aqueles que afirmam que “fulano se formou”. Funciona também com a primeira pessoa: “me formei em Artes” ou “formei em Artes”.

São diferenças culturais. E, como todo traço de identidade regional, é lindo.

Há, entretanto, uma questão muito fundamental de responsabilidade sobre a ação. A linguagem nos define e nos entrega. Oi, Freud, como vai você?

A gente não permanece o mesmo depois de estudar semiótica. Essa desgraça nos transforma em pessoas alertas o tempo todo. É um saco. Nem eu me aguento.

A forma como nomeamos os outros, por exemplo. Pedro Taam se torna meu irmão porque eu assim o intitulei. Pedro, aliás, é quem me explica que anastasia (grego) é ressurreição, a pessoa ressuscita porque ela fica de pé (ana- é algo parecido com “pra cima”). Adorei isso. Fiquei na dúvida sobre os zumbis hollywoodianos, mas imagino que os gregos previram isso também.

Ainda, se chamo alguém de “senhor” vs “você”. Ou, quando apresento alguém como “colega de trabalho” vs “amigo”. Ou, “miliciano” vs “presidente”. Vocês entenderam.

Muita coisa significa, como já nos explicou o linguista Ronnie Von.

A voz passiva certamente foi criada por alguém com uma certa esperança de que o problema se resolva sozinho. Quem nunca?

Infelizmente essa tática nem sempre funciona. Eu dizer que a louça procrastinou na pia, por exemplo, não ajuda em muito. Ela continua lá, impávida, me desafiando com o olhar.

“A casa precisa de faxina” é muito mais cômodo do que “Eu preciso fazer faxina na casa”. A responsabilidade da primeira frase é da casa, ela que lute.

Meu filho, felizmente, é capaz de dizer que matou o carro (o carro morreu).

E eu, felizmente, sou capaz de dizer que o amo (ele é amável).

Filho de peixe, essas coisas.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho