Nomes das personagens

Os cuidados necessários na hora de nomear as personagens para evitar confusão e desânimo nos leitores
Ilustração: Juliano Soares
01/09/2022

1.
É perfeitamente compreensível que o leitor esteja a pensar se o tema merece uma coluna. No quotidiano dos laboratórios de escrita, contudo, esse é um assunto diário e causador de um sem-número de discussões em sala de aula, derivando, em casos extremos, para riso e a anedota, sem resolvê-lo. Se esses laboratórios são a representação do universo interior do ficcionista, com suas múltiplas vozes, e muitas dessas vozes censuram o problema, por considerá-lo pequeno, senão vergonhoso ou verdadeiro tabu, não é demasiado dedicar alguns minutos ao tema.

2.
García Márquez sempre é lembrado quando ficcionistas iniciantes começam um romance e pensam em nomes para suas personagens. Longe de serem um modelo, os extravagantes nomes e sobrenomes de certas personagens do grande escritor fazem sucesso entre leitores, que nisso acham graça — e são engraçados mesmo, mas que nada acrescentam à incontornável qualidade literária das obras do Prêmio Nobel colombiano, que, junto a Alejo Carpentier, foi um dos fundadores da identidade latino-americana de fala espanhola.

3.
Essa identidade, como muito bem lembra Carpentier, implicava, desde o início da colonização, uma questão linguística: como dar nome às maravilhas no Novo Mundo, já que os Conquistadores traziam consigo um curto vocabulário medieval, ou, quando muito, renascentista? Logo os eruditos acostumaram-se às adaptações europeizantes de designações praticadas pelos povos originários, e foi uma enxurrada léxica que vem até hoje. Assim sendo, as escolhas de García Márquez não são um desvio total, mas — e este é o ponto — são irrepetíveis; o mesmo acontece com Guimarães Rosa e seus neologismos imitados aqui e além-mar.

4.
Para considerarmos esse tema, podemos partir de um dado bastante simples: ficcionistas amadores têm a compulsão de atribuir nomes a todas suas personagens, num irrefreável ímpeto criador, e mais, como se tivessem no cumprimento de um dever. Esse fenômeno não é apenas nosso; os ficcionistas russos do século 19 dão nome a todo ser humano que aparece no enredo e, para nós, e penso que em certa medida também para os leitores russos, esse procedimento gera uma tormenta cerebral. As personagens, mesmo as coadjuvantes, aparecem ora com seu nome próprio, ora com seu sobrenome, ora com seu apelido, ora com seu diminutivo.

5.
Há uma consideração especial: por vezes ficcionistas impõem a si mesmos um problema, perdendo infinitos neurônios na tarefa de atribuir nomes que poderiam ser chamados de “falantes”, isso é, que indiquem alguma qualidade pessoal da personagem. É de lembrar o agora subestimado escritor mineiro Autran Dourado, que teve merecido êxito nas décadas de 70-80. Num livro já clássico nos domínios da escrita criativa, Uma poética de romance/Matéria de carpintaria, saído em 1973, ele explica como deu nomes às personagens do romance Os sinos da agonia, cujo enredo é uma tragédia grega recriada no período do ouro de Vila Rica. Assim, Malvina tem esse nome porque lembra, entre outras coisas, de “Maligna”, “Mal-vinda”; Januário, porque lembra o deus bifronte Janus; Mariana é assim chamada para trazer à mente Ariane, Ariadne, todas personagens trágicas. Ainda citando russos: a personagem central de O capote, porque homem gago, Gogol deu-lhe o nome de Akaki Akakiévitch e, como escreve, “é fácil ver que não poderia ter sido outro”.

6.
O esforço de Autran Dourado — e, já agora, de Gógol — é um belo exercício intelectual, aliás, quase enternecedor, mas difícil de aceitá-lo dentro de qualquer lógica. Na pia batismal, ou no registro público, quando é dado um nome a uma criança, ninguém faz isso para conferir-lhe um futuro. O escritor Moacyr Scliar assinava uma secção de sua página de jornal chamada de Nomes que condicionam destinos, e o cronista José Simão mantém uma janela chamada Os predestinados; ambos os autores, com sentido humorístico, arrolam centenas de nomes e sobrenomes que, por absoluta coincidência, têm algo a ver com as futuras profissões ou ocupações das pessoas. Tudo isso é compreensível no domínio da blague circunstancial, mas, num romance, desmerece-o, por sua flagrante artificialidade.

7.
Retomando o parágrafo 4 em seu início: inegável a tendência nominadora, mas problemática. Problemática por sua irrelevância, e pior: pelos estragos que pode causar num romance, coisa pouco atentada na hora de escrevê-lo. Podem ser arrolados vários problemas, a saber: a. nomes a torto e a direito confundem o leitor; não precisamos dar nomes a todas as personagens que aparecem; b. nomes correntes, como Antônio, Luís, Maria, Ana, José, podem causar confusão entre personagens da hora da leitura, justamente por sua abundância; c. nomes raríssimos [à García Márquez] causam espanto e ruído, desviando a atenção do enredo; d. nomes habituais na ficção brasileira contemporânea são Pedro e Alice; talvez fosse o caso de pensar noutros.

8.
Textos ficcionais imaturos gostam de usar designações anteriores aos nomes: “Um tio dela, Pedro, …” ou “Sua prima, Alice, …” — é visível que impera, aqui, o princípio da preguiça, pois se, ao mesmo tempo se designa a pessoa, explica sua relação com a personagem central — mas a perda é da qualidade. Os apostos, se necessários em textos argumentativos, trazem um tom didático ao texto literário-ficcional.

9.
A quem está começando, e tentando resumir: o melhor é seguir a intuição ao escolher nomes de personagens, mas não custa sublinhar que o principal ponto é pensar se, em nosso romance, de fato precisamos de tantas personagens nominadas. Uma tia chamada Glória pode ser apenas “a tia”; a prima Alice, “a prima”, e assim por diante, para não sobrecarregar o leitor de uma desencorajadora lista telefônica das que não existem mais. Como sempre, na hora de escrever, vale o bom senso e, pela extensão do visto aqui, não é demais reiterá-lo.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho