🔓 Bodas de sangue

Aos 50 anos, Marcelo Moutinho evoca a obra do francês Georges Didi-Huberman para refletir sobre a natureza das nossas emoções
Ilustração: Thiago Lucas
22/06/2022

Você não acha que as pessoas andam menos emocionadas? — me pergunta uma amiga.

O primeiro impulso é responder que não. Mas paro pra pensar e, sob o efeito do aniversário de 50 anos, comemorados hoje, me debruço por algumas horas sobre o tópico.

Minha experiência recente não ajuda nessa inquirição, é bem verdade. Senti de perto o vento gelado da perversidade, seu bafo ruim. E a perversidade é o oposto da emoção. A vida tem outros cheiros, contudo. Foi neles que me detive enquanto deixava a indagação ecoar dentro da cachola. Passei por músicas, poemas, recordações ásperas. Até me lembrar de um texto de Georges Didi-Huberman.

Em 2013, o filósofo francês proferiu palestra no Teatro de Montreuil, nos arredores de Paris. O tema abordado foi justamente a natureza das nossas emoções.

Didi-Huberman é um pensador interessado por aquilo que o senso comum costuma menosprezar. Pelo que chama de “coisas chãs”. No livro Cascas, por exemplo, faz um elogio da superfície, em confronto com a ideia de relação direta entre “fundo” e “essência”.

Abrevio a digressão para que o papo não fique por demais metafísico: ao falar de árvores, Didi-Huberman está tratando sobretudo de existência. Da nossa existência. “A casca não é menos verdadeira que o tronco”, pondera. Até porque é parte desse mesmo tronco. E sua irregularidade, sua contingência, sua “impureza”, espelham a fugacidade e as experiências da nossa própria vida. Descontínua, acidentada.

Na conferência de Paris, Didi-Huberman refuta outra máxima ocidental: a de que a razão seria superior à emoção. “Vocês poderão entender que os filósofos clássicos tenham a tendência — como o fortão da escola que zomba na hora do recreio porque você tem um jeito ‘patético’ — a considerar a emoção uma fraqueza, um defeito, uma impotência”, diz. Segundo essa premissa, a emoção se contraporia à razão, mas também à ação. Redundaria, portanto, numa espécie de inércia.

Didi-Huberman evoca o próprio sentido da palavra para propor outro caminho. “Uma ‘emoção’ não seria uma ‘e-moção’, quer dizer uma ‘moção’, um movimento que consiste em nos pôr para fora (e-, ex-) de nós mesmos?”, questiona. Ora, se a emoção é movimento, ela é, sim, uma forma de ação. É motor, não paralisia. “Quando se arrisca a ‘perder a pose’, o ser exposto à emoção se compromete também com um ato de honestidade: ele se nega a mentir sobre o que sente, se nega a fazer de conta”, complementa o filósofo, que vislumbra um tanto de coragem nesse ato.

Perambulei pelas reflexões de Didi-Huberman, mas agora volto à pergunta do início do texto, embora sem conclusão alguma. É certo que há quem continue apostando todas as fichas no primado da razão. Qualquer fagulha de paixão é então lavada em água fria, esconjurada como falha ou debilidade. Do medo da futura dor, no entanto, advém mais dor. Não há como fugir do labirinto.

Peço perdão à minha amiga se não cheguei a uma resposta concreta. Talvez não chegue jamais, ainda que tente. Com meio século de funcionamento, o corpo já não traz o viço de antes. A balança grita, o médico dá bronca, a ressaca perdura por dias, parece virose. Como se diz à brinca no futebol, me tornei um ex-jogador em atividade. Mas lhe digo: tenho a alegria de continuar cercado por gente emocionada. Minha filha, meus irmãos, meus amigos. E é ao lado deles que eu quero estar, sempre.

Cinquenta anos são bodas de sangue”, escreveu o grande Aldir Blanc em canção gravada pelo Paulinho da Viola. Assim como o Aldir, que se fez da emoção seu combustível, acolho o futuro de braços abertos e só agradeço. Foi isso o que eu quis viver.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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