Era mil novecentos e oitenta e tal ou noventa e pouco. Minha memĂłria nĂŁo faz questĂŁo de precisĂŁo. Éramos um grupo de adolescentes ali pelos 13 a 16 anos e nunca tĂnhamos visto um filme pornĂ´. O que sabĂamos era que os meninos da rua viam. E se gabavam. E tiravam onda, alĂ©m de humores e secreções que sĂł conhecĂamos dos livros de ciĂŞncias, ao menos era o que a maioria dizia — nĂłs e eles. Aparentemente, nos odiávamos e vivĂamos competindo por coisas bestas.
TĂnhamos nomes e assinaturas de grupo de bairro, inclusive para escrever com caneta em porta de banheiro. As meninas de outros bairros eram sempre mais bonitas e melhores do que nĂłs, e os meninos de outros bairros nĂŁo nos encontravam. Mas o que importava, naqueles dias, era que os babacas dos meninos se gabavam de ter visto filme pornĂ´, explicitĂŁo mesmo, e a gente fingia que achava supernormal, com cara de quem lixava as unhas.
Locadora
Era mil novecentos e oitenta e picos ou noventa e ticos e existia um negĂłcio chamado locadora. Era uma espĂ©cie de comĂ©rcio onde podĂamos alugar filmes em fitonas VHS. Em casa, algumas de nĂłs tĂnhamos um aparelho chamado videocassete, uma espĂ©cie de caixa retangular que engolia a fita e passava na tevĂŞ o que a gente tivesse alugado.
As locadoras tinham regras. Uma delas era que menores de idade nĂŁo podiam pegar certo tipo de filme. PornĂ´… nem pensar. Mas a gente pensava. Morria de curiosidade. E, principalmente, ficava pau da vida porque os meninos viviam nos zoando. Éramos ingĂŞnuas, bobas, nunca tĂnhamos visto um filme de sexo explĂcito.
Embora as locadoras tivessem regras, tambĂ©m sempre havia quem as burlasse. Mas esse nĂŁo era bem o caso da dona da locadora do bairro, para nossa infelicidade. Os meninos eram um pouco mais velhos do que nĂłs, alguns já tinham dezoito anos, o que dava a eles o direito de falar de coisas que ainda nĂŁo acessávamos, contando vantagem atĂ© do que era evidentemente mentira. NĂłs, mais novas, e meninas ainda por cima, tĂnhamos a sensação de que todas as regras valiam mais para o nosso lado. E era.
A locadora do bairro tinha o sugestivo nome de Pirata. Nossas fichas lá eram as primeiras, tal foi nossa avidez por pegar filmes para assistir em casa. Nas salas de algumas, o videocassete imperava e podĂamos fazer sessões de cinema, sempre vendo historinhas permitidas. Mas, um dia, decidimos subverter e assistir, finalmente, a um pornozĂŁo bem sĂłrdido. Vamos nessa?
Qual de nĂłs?
Foi um dia tenso, cheio de sussurros e segredinhos atrás das pilastras dos muros das casas. Como vamos pegar esse bendito filme? Apenas uma de nós era maior de idade. Logo ela, minha maior inimiga. Fazer o quê? E ela era metida a ousada, toparia fazer o favor de entrar na locadora, passear pelos romances água com açúcar, zanzar pelas aventuras, mexer um pouco nos filmes de terror, mas parar de vez diante dos pornôs e eróticos, que ficavam mais no fundo ou no mezanino, e tirar de lá, despistado entre outros, o famigerado pornozão explicitão.
Lá fomos nĂłs pela rua, em grupo, altivas feito divas, descendo a rua em direção Ă locadora, no dia em que finalmente perderĂamos a virgindade do filme de sexo explĂcito. Combinamos assim: nos esconderĂamos perto da porta da locadora, enquanto a mais velha entraria lá, sem tremer e sem dar pinta, para alugar nosso filme proibidĂŁo.
Mas como sair com aquilo na rua? O filme ficaria registrado na fichinha da locadora? Como despistar as pessoas e entrar na casa da amiga que cederia o videocassete? Era uma tarde de dia de semana, os pais da colega estavam fora, seria moleza assistir ao filmaço e depois ir contar vantagem para os garotos do bairro, uns idiotas.
Aqueles dez minutos da colega dentro da locadora nos pareceram uma eternidade. Foi tenso, foi aflitivo e ainda dependĂamos do bom gosto dela. TĂnhamos nos esquecido de combinar qual filme ela pegaria, e naqueles idos nĂŁo era assim tĂŁo fácil conseguir informação. Perguntar a quem? Quem nos daria boas referĂŞncias pornográficas? E se nos lembrássemos dos filmes que os meninos mencionavam? NĂŁo adiantaria. QuerĂamos inovar, assistir a algo muito mais interessante do que as coisas que eles viam. Nossa colega maior de idade teria de ser esperta e maldosa.
O primeiro pornĂ´ a gente nunca esquece
De trás das árvores, do outro lado da calçada, ou espiando Ă s vezes pela lateral da porta da locadora, vĂamos nossa colega andando para lá e para cá, pegando filmes, devolvendo Ă prateleira, sem decidir nada. Quando ela finalmente entrou na seção de proibidões, morremos de ansiedade cá fora. Pega logo, menina! E ela lia, se demorava, relia, olhava as capas, a maioria tapadas com tarjas ou plásticos. AtĂ© que, enfim, ela catou um filme, foi ao balcĂŁo, assinou a ficha e saiu de lá com uma sacolinha na mĂŁo. Era hora!
Subimos a rua sem ver nada direito, loucas para acessar o videocassete e começar a assistir. Dobramos as esquinas em ĂŞxtase, ansiosas, falando alto, imaginando o que verĂamos naquelas cenas, quĂŁo explĂcito seria, se os atores e as atrizes prestariam, se haveria bons enredos ou nĂŁo (imagina!), se o sexo era mesmo de verdade ou se era fingimento, os gemidos, as posições, afe!
Chegamos Ă casa da colega, conferimos se havia alguĂ©m por lá. Seria uma enorme frustração se a mĂŁe tivesse chegado mais cedo ou se o irmĂŁo mais novo resolvesse dar o ar da graça. NĂŁo, o terreno estava livre. Era sĂł ligar o videocassete, ligar a tevĂŞ, dar um play e arregalar os olhos. Todas apinhadas no sofazĂŁo diante da tevĂŞ de tubo, atentas Ă s primeiras cenas pornozonas que verĂamos na vida. Doidas para saber mais e para contar vantagens mais tarde.
Logo na primeira cena, veio a terrĂvel decepção. Nossa desatenta colega pegara um desenho animado pornĂ´. Um x-rated cartoon, em cores, mas tudo na base do desenho, sem uma pessoa de verdade sequer. Fast forward, pelo amor de Deus, para ver se era engano ou se havia um filme de verdade depois. NĂŁo. Era uma sequĂŞncia de desenhos, afinal engraçados, com os sete anões fazendo suruba com a Branca de Neve, o Popeye comendo espinafre para o pinto crescer, a bruxa esperando a engorda do bilau do JoĂŁozinho preso na gaiola e assim por diante. Quase choramos. TerĂamos de começar tudo de novo. E, para piorar muito, os meninos do bairro ficaram sabendo. Haja bullying, haja vergonha. Gememos, mas foi de raiva.