As cenas são esparsas. Uma bronca da minha mãe, cujo motivo se dissipou no limbo da memória, depois o chamado de Sandra para que fosse até seu quarto. Sandra tinha 13 anos a mais do que eu. Na ordem etária das irmãs, era a segunda mais velha. Ela pegou um livro na estante e se sentou ao meu lado. Então contou a história de Flicts, a cor que não encontrava lugar no mundo.
Ao vê-la dobrar a última página, eu já não estava tão amuado. Sandra, que já se foi, nunca teve noção do impacto de uma leitura tão despretensiosa na formação do menino. Em poucos minutos, minha vida se transformara. Eu me sentia como Flicts. Eu era Flicts. E também buscava a implausível lua que pudesse, talvez, um dia me espelhar.
Recordo essa passagem de uma tarde em Madureira, minha Macondo suburbana, ao arrumar os livros infantis na estante de Lia. A edição que Sandra guardava no antigo quarto se perdeu no labirinto dos anos, mas a de Marcelo, marmelo, martelo, embora já bem gasta, tenho comigo. Na primeira página, a dedicatória: “Ao Marcelo, com um beijo da Mary, sua irmã — Rio, 24/02/81”.
Mary é minha irmã mais velha e possivelmente o livro de Ruth Rocha tenha sido o primeiro entre os tantos que me deu entre a infância e a adolescência. Não sei se a razão foi o nome do protagonista — é bem provável que sim. E a história do garoto que quer rebatizar todas as coisas com nomes que julga mais apropriados — “latildo” para cachorro; “suco de vaca” para leite — não fugiu mais da lembrança. Quem é que entende esse menino?, me pergunto ainda hoje.
É comum querermos que os filhos compreendam e até mesmo compartilhem nossos afetos. Ainda que seja uma quimera. Daí, talvez, minha tensão quando li Flicts e “Marcelo, marmelo, martelo” para a Lia. “É muito triste essa história”, ela comentou após a linha derradeira da obra de Ziraldo. “Mas é fofa”.
Com Marcelo, marmelo, martelo, muitas risadas e um incentivo a inventar palavras, a reescrever o universo à sua própria maneira. Não é pouco.
A leitura de um livro antes de dormir aos poucos se tornou, mais que hábito, um momento de encontro profundo entre pai e filha. Aos 6 anos, Lia já tem seus protagonistas favoritos — Gildo, Leotolda, o Monstro das Cores. Também sabe mencionar os autores do coração, como Eva Furnari e Marta Lagarta. “Rima ou combina?”, da Marta, acabou virando uma brincadeira nossa. Tesouro e besouro? Rima. Mar e areia? Combina. Gato e pato? Rima e combina.
Não sei se, a exemplo do que aconteceu naquele dia ao lado da minha falecida irmã, Lia se identificou com algum personagem a ponto de perceber, nele, um vislumbre de si mesma. Talvez jamais saiba. Mas cada noite nossa à frente de um livro infantil é uma confirmação do poder da literatura em criar laços desde muito cedo. Nas tramas e reviravoltas, nos desenhos e jogos de palavras, nas gargalhadas e nas perguntas embebidas de espanto, firma-se o fio que atravessa o tempo. Um fio capaz de ultrapassar a morte porque feito de amor, só de amor.