Meu avô gostava dos espelhos d’água da chuva depois de acontecida e das poças de luz alagando o chão do ateliê. Há esse brilho em seus quadros de interior e algumas paisagens, um brilho de águas calmas, brancas de refletir o céu e realçar contrastes.
Mas, uma vez, era o ano de 1957, meu avô pintou a chuva acontecendo. A chuva em-brumando uma alameda de árvores desfolhadas, quase fundindo um casal de figuras sob um só guarda-chuva, duplicando a lonjura de outra figura solitária, a chuva como um véu descendo sobre casarios mudos, um pouco azulando terra e ar, aprofundando os troncos das árvores de galhos suplicantes, a chuva fechando mais as casas já fechadas, encaixotando-as em pequenos maciços de refúgio, a chuva desfocando o percurso, dando-lhe sonho, e quem vem debaixo dela não mais caminha, flutua, e tudo é uma atmosfera úmida de dissoluções, uma bruma de grumos de tinta envolvendo aquele que vem, aquele que vê, de repente posto no mesmo embaciado caminho, como quem penetra o momento do próprio pintor em seu devaneio que medita.
Era um fenômeno guardado pelo poder do olhar que talvez fizesse minha avó sorrir com alguma solenidade ao nos mostrar esse quadro na parede. O quadro da chuva acontecendo. Era o nosso olhar pelo véu d’água da alameda, como por um leitoso tecido de memória, e então chovia. Era o nosso poder de, olhando bem, sentir a chuva. Essa que continua, que se refaz e volta a cair, acortinando ar e terra, sempre que houver olhos para ela. A qualquer hora que um de nós ainda pare na frente desse quadro, a qualquer hora que um de nós ainda olhe, mas olhe poderosamente, chove.