A crítica em estado crítico

“O enigma vazio”, de Affonso Romano de Sant’Anna, denuncia discursos que engrandecem equívocos nas artes plásticas
Affonso Romano de Sant’Anna por Nilo
01/04/2009

Uma das grandes lições da arte é mostrar aos homens o quanto a vida está edificada sob e sobre paradoxos. Desde as ubíquas relações amorosas, com as quais se experimentam as mais fortes sensações de gozo e tormenta, até a formação biofísica da vida humana, resultante do somatório entre a menor célula do corpo masculino — o espermatozóide — e a maior do organismo feminino — o óvulo —, percebemos o que nos é mostrado como absurdo mostra-se absolutamente normal. No mesmo trilho, algumas das maiores nações capitalistas do mundo buscam na cartilha socialista uma alternativa para saírem do pântano em que se atolaram, encontrando-a na estatização do sistema financeiro. É com essa matéria paradoxal que se formam as maiores obras estéticas e reflexivas do mundo, justamente por serem fartas de essência humana.

Dessa forma, compreenderemos por que as vanguardas, em suas buscas convulsas pela quebra de padrões, conduziram as artes a aprisionarem-se à liberdade. Essa aparente incoerência é um fenômeno bastante visível atualmente, mas já ocorre há mais de cinqüenta anos, e se apresenta como um paradoxo negativo, até mesmo porque a vanguarda já é uma senhora centenária, e obviamente não apresenta o mesmo vigor dos seus períodos de origem e consolidação.

As diversas razões que esclarecem (ou obscurecem) o presente panorama das artes plásticas e visuais são o tema de O enigma vazio, livro com o qual Affonso Romano de Sant’Anna aponta os impasses de artistas e críticos contemporâneos, revelando que estes se tornaram fundamentais para a existência intelectual daqueles, num esquema discursivo que pode até mesmo prescindir da obra, relegando-a a um posto subalterno, acima do qual paira, praticamente absoluto, o conceito de obra de arte e seus alicerces teóricos.

Amadurecimento analítico
O novo estudo de Affonso Romano de Sant’Anna completa uma trilogia iniciada em 2003 com Desconstruir Duchamp e continuada com A cegueira e o saber, três anos depois. O livro inicial, que representa a primeira investida de peso que o poeta-crítico mineiro faz à arte contemporânea, apresenta uma estrutura simples, soando desprendida do rigor das pesquisas acadêmicas, justamente por ser uma coletânea de artigos que o autor publicava semanalmente num jornal carioca.

O enigma vazio exibe um trabalho bem mais cuidadoso, de análises minuciosas (muitas delas se repetem, é verdade) e de vasta bibliografia, conseqüência de uma das reivindicações de Affonso, movida pela necessidade de se fazer uma crítica pautada pela congregação de disciplinas, para que se expliquem as obras (apresentadas como artísticas muito embora sejam negadoras da própria arte) e também os mecanismos que as elegem na bolsa de valores, sejam culturais ou financeiros. Diz a introdução:

A lingüística, a filosofia, a sociologia, a antropologia, a psicanálise, a economia, a política, o marketing e outras disciplinas são apropriados para tratar deste produto ou commmodity que se anuncia abertamente como não-artístico e não-estético.

Essa nova empreitada não se detém somente na análise de obras. Buscando desmascarar alguns medalhões da arte modernista ocidental, Affonso sempre se vale de frases dos próprios artistas, como a de Marcel Duchamp, ao dizer que “este século [o 20] é um dos mais baixos da história da arte, mais baixo até que o século 18, quando não havia arte maior, mas apenas frivolidades”.

A declaração é um indício dos oximoros combatidos pelo livro, pois se observamos as coisas por uma cabível e necessária perspectiva lógica, concluiremos que o próprio Duchamp via as suas realizações como diminutas. Sendo assim, como é possível que muitos críticos tenham-no elevado à categoria de gênio, e a sua Fonte (o famoso urinol virado ao contrário) tenha sido consagrada como a obra mais influente do século passado?

É verdade que se concebermos tal influência levando em consideração a face mais comum das manifestações estéticas atuais — de anemia expressiva —, daremos razão à eleição, pois a obra de Duchamp, em seus lances mais celebrados, nada mais foi do que uma ironia radical em estado bruto (lembrem-se a roda de bicicleta, a pá para catar neve, o porta-garrafas, etc.). Mas sabemos que, por outro lado, há nisso — declarar uma obra como a mais influente — uma conotação de “mais importante”, de “mais representativa” ou coisa do gênero, positivamente falando.

São questões dessa ordem que levarão Affonso a percorrer caminhos que traçam um diagnóstico bastante esclarecedor, de acordo com o qual boa parcela da crítica restringi-se a aplaudir o que não requer, pelo menos em princípio, celebração. Pois uma vez que a louvação a criador e criatura é um proceder tradicional, não se devia atribuí-lo aos transgressores. A essa crítica, que confunde a si e aos outros, comprometida com o elogio previamente estabelecido, o autor chamará de “crítica do endosso”.

É pedagógico (e fascinante) constatar como pessoas notáveis cometem notáveis equívocos, seja se entregando à hiperinterpretação das obras, seja praticando o que chamo de crítica do endosso. Estou me referindo, por exemplo, a Octavio Paz e sua fantasiosa interpretação de “O grande vidro”, de Duchamp, à leitura que Jean Clair faz de Duchamp comparando-o a [Leonardo] da Vinci, à retórica envolvente e falaciosa de Jacques Derrida ao polemizar com Heidegger e Meyer Schapiro sobre “Os sapatos”, de Van Gogh, e às alucinações visuais e verbais de Roland Barthes a respeito de Cy Twombly.

Criticando a crítica
O principal objetivo de O enigma vazio é analisar os discursos críticos (ou acríticos) de famosos ensaístas internacionais sobre obras de qualidade discutível. Apresentando três partes e um suplemento, será na primeira que o livro mostrará sua maior envergadura, visto que em cada um dos seus quatro capítulos será passado em revista um texto afamado de um intelectual de renome a respeito de um artista notabilizado.

A começar por Octavio Paz e seu livro Marcel Duchamp ou o castelo da pureza, será observado o fenômeno que faz do artista uma obra do crítico. Ao ruminar sobre O grande vidro de Duchamp, o pensador mexicano se deixa levar nitidamente pelo peso da assinatura da obra, passando a ver nela aspectos inexistentes, sentenciando ao final de seus delírios, que a peça em questão “é a última obra realmente significativa do Ocidente”. Nada mais infeliz, sobretudo se pensarmos, entre outros criadores surgidos depois de Duchamp, no brasileiro Oswaldo Goeldi e no equatoriano Oswaldo Guayasamín.

Numa época em que tanto se fala de inversão de valores, o posicionamento de Affonso pode ser utilizado para uma compreensão mais eficiente de outros fenômenos: ano passado, no Brasil, houve uma onda de comemorações pelos cinqüenta anos da Bossa Nova, cujo repertório é o mesmo desde o tempo de seu surgimento, e o discurso que edifica, também. Como se não bastasse um festival-votação promovido pela Rede Globo no ano 2000 culminado com a eleição de Garota de Ipanema a maior música popular brasileira do século 20, somos quase que forçados a aceitar que João Gilberto é um músico descomunal, simplesmente porque há mais de cinco décadas ele canta “sem cantar”, e toca “destocando” seu violão. Convertido num astro, até a sua habitual falta de elegância torna-se um atrativo, e entre desafinações e exibições de mau humor, ele chega a receber até R$ 2 milhões por apresentação. E sem falar nas insistentes aproximações que jornalistas fazem entre o gênero e o samba…

Voltando ao livro, o crítico e curador francês Jean Clair também é contestado por ter uma postura ambígua ao falar das artes que prosperaram entre as décadas de 1950 e 1960, dado que condena os filhos e enaltece os pais. Sua declaração parece deixar claro o modo como ele interpreta as heranças dadaístas (visto que o dadaísmo é a vanguarda mais viva na arte mortificada que nos cerca): “Poucas épocas como a nossa terão conhecido um tal divórcio entre a pobreza das obras que produz e a inflação que a menor delas suscita”. Preciso comentário, mormente se o associarmos a nomes como Jackson Pollock, por exemplo, mas que acaba por parecer uma expressão do “politicamente correto”, como o do deputado que critica a ditadura militar, mas é parceiro político dos que mantêm o trabalho escravo. Isso porque o crítico francês, ao tratar de Duchamp, cujos feitos são a própria gênese do abstracionismo que esteriliza os museus modernos, fará, uma vez constatada a envergadura do trabalho de perspectiva no Grande vidro, a audaciosa afirmação: “Nenhuma dúvida, quanto a isto, que Duchamp possa ser considerado um moderno Leonardo”.

Na esteira dos intelectuais rechaçados, está também Jacques Derrida, visto por Affonso como um “exuberante exemplo de overdose da linguagem”, pelo fato de em suas desconstruções ele construir um discurso que não se mantém coerente, indo do nada a lugar nenhum numa polêmica sobre um quadro de Van Gogh que envolveu, além de Derrida, Martin Heidegger, Meyer Schapiro e Frederic Jameson.

Adiante, o alvo de O enigma vazio será a crítica romanesca de Roland Barthes. É fato que há vários episódios em que críticos tiveram alta fatura ao impregnarem seus escritos com altas doses de poeticidade. Só no Brasil, livros como Formação da literatura brasileira (especialmente a introdução), de Antonio Candido; O ser e o tempo da poesia, de Alfredo Bosi; Relâmpagos, de Ferreira Gullar; e Forças e formas, de Wilberth Claython Ferreira Salgueiro, são exemplos exitosos de ensaísmo estetizado. Mas o caso aludido por Affonso é outro: a crítica que prescinde da análise e forma um texto algo encomiástico para inserir-se à obra eleita, sem contribuir em nada para a sua compreensão. Daí que Barthes, ao escrever sobre os quadros abstratos de Cy Twombly (cujas reproduções para o livro foram desautorizadas), formula associações da pintura do norte-americano a elementos da cultura oriental, para talvez sublimá-lo. Nessa ocasião, Affonso Romano de Sant’anna será incisivo:

A essa antipintura (neutra? Castrada?) sem desejo que é a de Cy Twombly, é que Barthes tenta conferir o que ela não tem sem se dar conta de que aquele que denunciou o aspecto “tagarela” da crítica está tagarelando sobre o “banal”, tentando torná-lo profundo.

No mais, o livro vai se perpetuar, com algumas repetições, na atitude de encontrar os móveis da arte contemporânea, em especial os investidores que também interferem, e muito, nos rumos da constituição do sistema cultural do Ocidente. Com o mesmo impulso, O enigma vazio identificará os paradoxos nocivos à nossa cultura, em especial uma má interpretação das vanguardas, quando a destruição dos padrões tornou-se um padrão que não aceita ser destruído.

Os mais apressados classificarão a obra de reacionária, acusando seu autor de misoneísmo, como sempre acontece com quem reprova os excessos derivados das vanguardas. Num período em que até fezes depositadas em latas tornam-se arte, como as produzidas em larga escala por Piero Manzoni, pode-se compreender melhor por que e por quem as torres gêmeas foram de fato atacadas, da mesma forma que entenderemos por que Bush estraçalha dois países, sem que ninguém o chame de terrorista. Foi Caetano Veloso quem disse que “alguma coisa está fora da ordem”, e o livro de Affonso Romano de Sant’Anna nos permite dizer que são algumas, muitas delas entre o que genericamente chamamos arte contemporânea.

O enigma vazio
Affonso Romano de Sant’Anna
Rocco
336 págs.
Affonso Romano de Sant’Anna
Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1937. É poeta, cronista e ensaísta. Autor de Que país é este?, Vestígios, Drummond, o gauche no tempo, entre outros.
Marcos Pasche

É crítico literário.

Rascunho