O menino e as mulheres

Em “A pensão Eva”, o italiano Andrea Camilleri recria suas lembranças juvenis na Sicília
Andrea Camilleri, autor de “A pensão Eva”
01/04/2009

O que pode acontecer quando um escritor, depois de ter se tornado muito famoso graças a dois gêneros específicos, resolve dar um tempo em sua obra costumeira para investir em um gênero completamente diferente? Para o escritor, talvez esse não seja um grande problema, desde que tenha talento. Para ele, pode ser até um momento de diversão e descontração, uma espécie de pausa criativa para investigar outras possibilidades que podem sair de sua pena. O principal problema, acredito, deve estar em seus leitores, que se acostumaram a ver o autor trabalhar com um determinado gênero e, quando ele arrisca em outra seara, estranha o resultado final.

É assim que me senti ao terminar de ler o último livro do italiano Andrea Camilleri, A pensão Eva. Mundialmente conhecido como o criador do detetive siciliano Salvatore Montalbano e também por seus livros que recontam a história da Sicília, Camilleri dá uma pausa nesses dois gêneros para escrever um romance quase autobiográfico sobre a infância e o início da vida adulta na sua ilha natal. Ainda que o seu talento transborde das páginas de A pensão Eva, dá a impressão sempre de que, de uma hora para outra, Montalbano saltará de trás de um muro de Vigàta, a cidade fictícia onde mora o inspetor fictício mas que também é o cenário deste romance, para resolver o crime que não sabemos qual é, mas que logo aparecerá. E isso não acontece. Também não temos em A pensão Eva o cuidado que Camilleri dá à culinária siciliana. Enquanto Montalbano é um gourmet, com pratos que nos fazem salivar enquanto lemos, neste novo romance temos poucas chances de apreciar a cozinha mediterrânea.

Fora Vigàta, nada mais é parecido com os romances de Montalbano, exceto a maneira de escrever de Camilleri, que tornam seus livros um passeio dos mais prazerosos que há na literatura. O protagonista principal de A pensão Eva é o menino Nenè, “uns 80% autobiográfico”, como disse o escritor em uma entrevista recente. Camilleri descreve a transição entre a infância de Nenè e o início de sua vida adulta, aos 18 anos, sempre por meio de sua relação com a Pensão Eva, o único bordel com alvará de funcionamento de Vigàta. Pelo jeito, a atividade era regulamentada à época do fascismo e altamente organizada. A cada 15 dias, pelo que conta Camilleri, a Pensão Eva trocava as suas profissionais, em um intercâmbio que envolvia toda a Itália. Assim, a cada 15 dias havia novas meninas trabalhando na pensão.

Descoberta do mundo
A primeira frase do livro explica um pouco o que veremos a partir dali: “Foi um pouquinho antes de completar os seus 12 anos: Nenè compreendeu finalmente que acontecia dentro da Pensão Eva entre os homens adultos que a freqüentavam e as mulheres que moravam nela”. Basicamente, vemos a descoberta do mundo do sexo e dos sentimentos pelos olhos de Nenè/Camilleri. Primeiro, vemos o mistério de tentar saber o que se faz dentro da pensão, as conjecturas que são feitas por ele, extraindo e processando informações de fontes variadas para então perguntar ao pai se era verdade que na pensão podia-se alugar mulheres nuas, e o que era feito com esse aluguel — ao que o pai responde que os homens as alugavam para ficar olhando para elas —, até descobrir com uma prima mais velha para que foram feitos homens e mulheres e então saber o que se fazia dentro da pensão.

Sem muitas pretensões filosóficas, Camilleri faz mais filosofia ao contar a vida como ela foi. Nenè não é filósofo, apenas um menino normal de uma época nem tanto, com o fascismo permeando todas as relações sociais da Itália daqueles anos. Essa sombra vai ficando mais pesada à medida que se aproxima a Segunda Guerra Mundial, com reflexos óbvios em toda a vida das pessoas, até a sua conclusão. Ao longo do caminho, Nenè apenas sente, sem refletir, como a vida muda, como as relações humanas mudam e são afetadas pelo ambiente ao redor. Ao mesmo tempo, Nenè/Camilleri dá a sua homenagem a essas mulheres que, longe de ter uma vida fácil, podem ser grandes professoras. Ou, como ele cita a importância delas para Nenè e seus amigos Ciccio e Jacolino, “as histórias daquelas garotas fariam com que eles compreendessem. Compreender alguma coisa sobre o mundo, a vida”.

Como um bordel é um lugar de infinitas histórias, Camilleri cede um tanto de seu livro a contar “causos” que lá aconteceram. E é nessa parte que o livro deixa de lado o seu aspecto mais bacana, que é o de acompanhar Nenè em sua formação, para contar crônicas de bordel. São histórias deliciosas, claro, mas que não chegam a combinar tanto com o resto do livro. Durante um capítulo, Nenè aparece apenas como uma testemunha dos Prodígios e milagres (título do capítulo quatro) que tem como palco a pensão Eva. Acaba sendo um intervalo recreativo para a história, uma espécie de tomada de fôlego para enfrentarmos o último capítulo de A pensão Eva, em que a guerra chega a Vigàta, com todas as conseqüências ruins inevitáveis nesses momentos.

Camilleri mostra que, se Montalbano ou a história da Sicília merecem um descanso para ele, seu talento não dá pausa. A pensão Eva é um intervalo de alta qualidade para quem gosta de um livro bem escrito, com personagens para lá de reais. Nenè é uma síntese de um menino que vira homem de uma época, mas que de alguma maneira tem sua história recontada todos os dias, em todo o mundo, de muitos jeitos diferentes. Enfim, um livro que é um pouco de todos nós.

A pensão Eva
Andrea Camilleri
Trad.: Andrea Ciacchi
Record
160 págs.
Andrea Camilleri
Nasceu em Porto Empedocle (Agriento), na Sicília, Itália. Sua estréia como romancista aconteceu em 1978, mas o primeiro livro de sucesso foi A forma da água, de 1994, em que nos é apresentado o comissário de polícia Salvatore Montalbano — uma homenagem do italiano ao também escritor de romances policiais Manuel Vázquez Montalbán, espanhol. Ambientado em Vigàta, uma cidade inventada por Camilleri mas que sintetiza a sua visão da Sicília, o romance deu início a uma seqüência de sucessos e prêmios para o italiano.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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