O escritor William Faulkner tinha o hábito de reler todos os anos os autores que amou na juventude: Cervantes, Flaubert, Balzac, impressionado com o modo como criavam um mundo próprio, intacto, vivo, uma corrente de vitalidade ao fluir das páginas. Décadas depois, no coração de Minas Gerais, Luiz Ruffato era um jovem estudante quando descobriu os livros de William Faulkner numa livraria, encantado com os caminhos formais que o escritor americano indicava. Se, no século 19, Flaubert lia Balzac, que lia Cervantes, e se, um século depois, os três escritores se reuniam na estante de Faulkner, na estante do escritor Luiz Ruffato, O som e a fúria está ao lado da Comédia humana.
Dizem que a escritora Virginia Woolf ficou tão impactada ao ler Bliss, conto de sua contemporânea Katherine Mansfield, que tomou um porre homérico e ficou gritando num bar: “Morro de inveja dessa mulher!”. Em algum lugar distante do centro de Londres, onde morava solitária, longe do frio, Mansfield lia cuidadosamente a obra de Woolf. “Como escreve bem!”, dizia por carta ao marido, “tão diferente de tudo e tão intrinsecamente próximo do mundo”. Anos depois, do outro lado do oceano, uma jovem ucraniana que se mudou com a família para o Brasil quando tinha apenas dois meses de idade, entrou numa livraria para comprar um livro com o seu primeiro salário. Depois de folhear vários, se deparou com um que continha frases tão singulares que ela não conseguiu se mover, “Esse livro sou eu!”, pensava comovida Clarice Lispector ao ler, numa livraria do centro do Rio de Janeiro, o mesmo conto de Katherine Mansfield que Virginia Woolf havia lido. Tempos depois, Clarice escreveria um livro chamado Felicidade clandestina, título inspirado livremente na obra da escritora neozelandesa. Hoje, a escritora Adriana Armony reúne em sua estante os contos de Lispector, que “me parecem um ponto alto de sensibilidade e exatidão”, e os romances de Virginia Woolf. Antes dos vinte anos, leu Orlando, impressionada pelas possibilidades existenciais e lingüísticas da literatura, reveladas pela escritora inglesa.
“No ciclo eterno das mudáveis coisas”, José Saramago sussurrava este verso de Fernando Pessoa, nos primeiros anos da década de 80, enquanto escrevia O ano da morte de Ricardo Reis, o heterônimo preferido de seu poeta preferido. “Tão preferido que foi preciso escrever sobre ele, deslocá-lo um pouco de seu criador e torná-lo meu personagem, para nos aproximarmos”. Uma década depois, a escritora Adriana Lisboa sussurrava as primeiras frases do livro de Saramago sobre Ricardo Reis, enquanto entrava numa sala da faculdade de música, onde era aluna. Muitas vezes, Adriana interrompia os estudos para atender a outro chamado irresistível. Tirava o livro de Saramago de dentro de sua bolsa e acabava deitada no carpete, devorando cada palavra, impactada por aquele jeito de escrever que continha em cada página uma música única, uma sonoridade singular. Enquanto José Saramago escrevia o seu livro sobre o heterônimo de Fernando Pessoa, a multiplicidade do poeta português também encantava o escritor Flávio Carneiro quando era aluno do curso de Letras no Rio de Janeiro. Flávio levava os volumes de a Obra completa de Pessoa para cima e para baixo nos corredores da universidade, perturbado pela multiplicidade criada através dos heterônimos, o criador que se alimentava e era alimentado por suas criaturas. Fernando Pessoa reinava, ao lado de Jorge Luis Borges, na mesa de cabeceira de Saramago, em Lisboa, ao mesmo tempo em que Obra completa de poeta português estava no topo dos livros empilhados na estante de Flávio Carneiro, em terras muito brasileiras.
Jorge Luis Borges era um leitor tão apaixonado que dizia amar mais as páginas que leu, durante toda a sua vida, do que as que escreveu. Mais tarde, Italo Calvino diria o mesmo, mas citando o escritor Borges como sua leitura essencial, “ele consegue condensar em textos sempre de pouquíssimas páginas uma riqueza extraordinária de sugestões poéticas e de pensamento”. Mais ao sul do Brasil, Cintia Moscovich conserva os livros do autor de Ficções e os do autor de O cavalheiro inexistente permanentemente em sua mesinha de cabeceira. Lado a lado, Borges e Calvino compartilham espaço com outros escritores. “São autores que tenho lido sempre e nos quais busco, mesmo que em vão, descobrir que processo criativo seguem para desembocar naquele extraordinário grau de excelência.” Entre eles, o escritor Luiz Ruffato, leitor de Machado de Assis, lido também por Adriana Lisboa, que também lê Cristovão Tezza, que lê Bernardo Carvalho, também lido por Sérgio Sant’Anna, que está na estante de Adriana Armony, que lê Clarice Lispector, lida também por Cintia Moscovich, que sempre volta ao Ruffato, leitor de Faulkner, que era leitor de Balzac, que por sua vez era leitor de Cervantes, que era amado por Borges, que era cultuado por Calvino, que adorava Flaubert, que por sua vez dizia, “amemos e reverenciemos uns aos outros em nossa arte”, e repetia, mesmo aos mais céticos, “como os místicos se amam uns aos outros em Deus”. O escritor Guy de Maupassant, seu fiel amigo, foi um dos únicos que compreenderam imediatamente as palavras de Flaubert, grande amante da vida e da literatura. “Ao honrar a criação um do outro, estamos honrando algo que nos liga a todos profundamente, e que nos transcende.”
NOTA
Agradeço aos escritores que gentilmente colaboraram com esta crônica.